domingo, 30 de agosto de 2020

Lady in pink

Quando estava na equipa de programação do IndieLisboa, dada a minha péssima e traiçoeira memória, mantive um pequeno diário onde registava as impressões de cada filme que via, de maneira a ter uma referência válida que me auxiliasse a discuti-los nas reuniões. Quando comecei a trabalhar noutro lado, tive de deixar (com pena minha) o Indie, mas guardei o dito diário comigo como lembrança. Das dezenas de filmes que vi em fase de pré-selecção, houve um em particular que me deixou absolutamente estupefacto, autêntico OVNI cinematográfico cuja excentricidade fê-lo ser das obras contemporâneas mais frescas, alucinantes e originais que passei a conhecer. Encaminhei-o, sem titubear, aos meus colegas de equipa. O seu nome? "Greener Grass".

Apesar do meu forte entusiasmo, e dado estarmos ainda a muitos meses do festival, nunca tive a certeza absoluta de que chegaria à selecção final. Por isso, foi com grande júbilo que ontem soube que sim. Passa amanhã no Capitólio e dia 4 no Ideal. Aproveito para compartilhar o brevíssimo excerto que lhe dediquei nas páginas do meu caderno (perdoem o registo informal e a ligeira superficialidade do texto, mas a quantidade de filmes que havia para visualizar era, logicamente, inversamente proporcional ao tempo disponível para uma reflexão individual mais aprofundada):

"A loucura. O filho mal-comportado de David Lynch e John Waters, sem as presunções oníricas do primeiro ou as provocações abjectas do segundo. Hilariante sátira absurdista ao sonho americano com todas as suas ilusões de felicidade capitalista apresentadas, sem medos, num humor negro bastante original. Destacam-se ainda o delírio plástico, os enquadramentos insólitos com as personagens a serem espreitadas por entre pernas e, claro, a senhora de cor-de-rosa muito gira."

Por isso, já sabem. Se não gostarem de surrealismo suburbano, têm sempre a bela, talentosa e multi-facetada (actriz, co-argumentista e co-realizadora) Jocelyn DeBoer, "lady in pink", com o seu sorriso metálico resplandecente. Seja a realizar ou a representar, acredito que não passará muito tempo até voltarmos a ouvir este nome. Ela gosta da câmara, e a câmara gosta dela.

Greener Grass Trailer: Greener Grass: A New Baby - Metacritic
Greener Grass (2019), Jocelyn DeBoer e Dawn Luebbe

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

É que é isso mesmo. Um crítico de cinema não tem o direito de criticar se nunca realizou um filme. Para além disso, um inspector de automóveis não tem o direito de inspeccionar se nunca construiu um carro de raiz. Para além disso, um comentador desportivo não tem o direito de comentar se nunca foi treinador de uma equipa. Para além disso, um auditor não tem o direito de auditar se nunca foi CEO de uma empresa (o Ricardo Salgado, pelo menos, agradecia). Para além disso, eu não tenho o direito de partilhar fotografias da Scarlett Johansson se nunca fui namorado de uma actriz mundial célebre. Para além disso...

(continue quem quiser)

Saudade. - E Deus criou a Mulher

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O charme, o estilo, a elegância, a voz inconfundível que nos faz querer pagar para ouvi-la nem que seja a ler uma coluna das páginas amarelas (e ainda mais se for da letra "S"). Actor de Hitchcock, Lumet, Kalatozov ou McTiernan. Homem que queria ser rei, homem que interpretou grandes reis (3 vezes - Agamemnon, Artur e Ricardo Coração de Leão), polícia incorruptível de Chicago, xerife obstinado do espaço sideral, espião sedutor ao serviço de Sua Majestade.

Por isto e por mais, um brinde aos 90 anos de Sean Connery, cavalheiro extraordinário.

domingo, 23 de agosto de 2020

"In vino veritas"

The Offence (1973), Sidney Lumet
Numa entrevista, o Woody Allen referiu este Lumet como um dos seus filmes favoritos de sempre. Sim, sim, de sempre. Numa resposta que inclui os familiares "A Grande Ilusão", "Ladrões de Bicicletas", "Rashomon", "O Sétimo Selo", "Morangos Silvestres", "Os 400 Golpes" e "A Regra do Jogo", surge este filme inusitadamente mencionado, o qual o cineasta americano reconhece como pouco conhecido. Claro que fui atrás.

É como se o Orson Welles filmasse o "Brute Force" do Dassin numa prisão militar no deserto. As grandes angulares a distorcerem os rostos dos guardas e prisioneiros de maneira grotesca, os contra-picados a encurralarem as personagens contra tectos desgastados e paredes humedecidas, os planos-sequência a exporem as várias camadas de acção em grande profundidade de campo (se aquela primeira cena não foi inspirada na inicial do "Touch of Evil", então não sei em que foi), tudo isto denuncia uma filiação com Welles.

Mas a Lumet interessa a dor, a transpiração, a exaustão física e psicológica a que o grupo de prisioneiros vai sendo sujeitado nas punições sádicas confundidas com protocolos disciplinares, como as sucessivas escaladas sisifianas da colina do título, catalisadoras do medo, da morte e da loucura. A autoridade é tão asfixiante como o calor daquele meio, o qual Lumet transmite pelos ofuscantes lens flares, pelas texturas das peles tressuadas dos actores e pelo barulho dos mosquitos e cigarras na banda de som. E é neste estabelecimento marcado pelo racismo, pela humilhação e pela violência que a personagem intrépida e resiliente de Sean Connery é tornada em enorme figura de calvário, numa intensa obra cinematográfica que denuncia as práticas mais abjectas e cruéis do Exército.

Se é um dos maiores filmes de sempre, não sei. Mas, pelo menos, prova duas coisas (como se dúvidas houvesse). Primeira, que Lumet dominava em todos os aspectos a gramática cinematográfica. Segunda, que Sean Connery foi (e é), pelo magnetismo da sua personalidade única, um dos maiores actores da História do Cinema. Este último fará 90 anos depois de amanhã. Aproveitemos para recordá-lo evocando grandes filmes como este.


The Hill (1965), Sidney Lumet

domingo, 16 de agosto de 2020

Aphrodite

To breathe her perfume, to feel her skin, to taste her mouth. Your heart beating faster, her blood getting warmer, your breath getting shorter. Her lower lips kiss your member, her upper ones give you to taste the wine of the gods. She moves, she moans, she lives. In your sheets, a goddess. In your room, Heaven.


The Big Town (1987), Ben Bolt e Harold Becker

sábado, 8 de agosto de 2020

O termo "anti-social" tem uma conotação negativa injustamente atribuída. Meus caros, Pascal uma vez escreveu que todas as desgraças dos homens advêm do facto de estes não saberem ficar quietos nos seus quartos. Um anti-social não é mais do que um firme pascaliano, contribuindo para o bem-estar da sociedade (e para o seu) através de uma reclusão voluntária e auto-imposta. É uma misantropia com o seu quê de altruísta. E com a vantagem de ter Wi-Fi sempre à mão.

Chamando os bois pelos nomes

Hemingway era um argumentista. John Huston um ilustrador de argumentos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Textos Junho e Julho 2020

Blow Out (1981) de Brian de Palma
http://www.apaladewalsh.com/2020/06/blow-out-a-cruzada-sonica-de-brian-de-palma/

In Memoriam Ennio Morricone - Contributo com um pequeno texto a propósito da banda sonora de The Mission:
http://www.apaladewalsh.com/2020/07/ennio-morricone-1928-2020-a-suprema-arte-de-ouvir-o-filme/

10 Filmes Portugueses para ver na Filmin - Contributo com um pequeno texto ao Jaime (1999):
http://www.apaladewalsh.com/2020/07/10-filmes-portugueses-para-ver-na-filmin/

E uma entrevista ao produtor Paulo Branco, cujo guião foi feito pelos walshianos Luís Mendonça, Carlos Natálio e por mim:
http://www.apaladewalsh.com/2020/07/paulo-branco-um-produtor-tem-de-ser-um-fingidor-um-actor-na-sua-relacao-com-o-realizador/
«-Chardin - disse Charley. - Sim, já o conheço. 
-Mas já olhou alguma vez para ele? 
(...) 
-Isso? - exclamou Charley com espanto. - Um pão e um jarro de vinho? É verdade que estão muito bem pintados. 
-Sim, tem razão. Estão muito bem pintados. Estão pintados com piedade e com amor. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho. É o pão da vida e o sangue de Cristo, mas não já negados aos que se finam de fome e de sede, ou servidos em óbolos pelos padres em determinadas ocasiões. É o sustento quotidiano da Humanidade sofredora. É tão humilde, tão natural, tão amigo! É o pão e o vinho dos pobres que só pedem que os deixem em paz, que lhes permitam trabalhar e comer em liberdade o seu simples passadio. É o grito dos desprezados e dos rejeitados. Diz-nos que, por maiores que sejam os seus pecados, os homens, no fundo, são bons. Esse pão e esse jarro de vinho são símbolos das alegrias e dos pesares dos mansos e humildes. Eles pedem-nos compaixão e afecto. Dizem-nos que esses homens são da mesma carne e do mesmo sangue que nós. Dizem-nos que a vida é curta e áspera, e a sepultura fria e solitária. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho: é o mistério do destino do homem na terra, do seu anseio por um pouco de amizade e um pouco de amor, e da sua humilde resignação quando vê que até isso lhe tem de ser negado.» 

«Férias de Natal», W. Somerset Maugham. Tradução de Leonel Vallandro

Still Life with Bottle, Glass and Loaf (séc. XIX), Imitador de Jean-Siméon Chardin* 
*Mas, na altura do romance de Maugham, a autoria era atribuída ao próprio Chardin. E esta divergência em nada inviabiliza a análise no texto.