domingo, 25 de fevereiro de 2018

The Blackout

Yet each man kills the thing he loves
Oscar Wilde, The Ballad of Reading Gaol

Impossível não recordar a frase do escritor irlandês aquando a visualização de The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997) de Abel Ferrara. Matty, o seu protagonista, é um actor que tenta relembrar uma noite em Miami que a memória acabou por recalcar. Ele é, afinal, a versão cáustica e auto-destrutiva do Scottie de James Stewart em Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), partilhando com ele o desejo erótico, possessivo e cego que culmina na aniquilação inconsciente do objecto amado, reconstruído noutra entidade. Filme de excesso imoral (sexo, álcool e drogas) movido pelo excesso plástico (sobreimpressões, movimentos e diferentes texturas visuais), este último nunca se afasta, formalmente, do ponto-de-vista de Matty, fornecendo, de forma quase alucinogénica, o caos mental provocado pelo meio irresponsavelmente hedónico onde o protagonista habita. Excesso(s) que conduzem à depressão e sitiam a personagem num cerco esquizóide de aparências e obsessões, onde a libertinagem incompressível é sinónimo de condenação.

Mas The Blackout é também um filme sobre a procura da verdade e o insólito medo em encontrá-la. Medo encarnado pela culpa constante de Matty no pedido por um aborto à mulher que o abandonou ao ver o estado de decadência e dependência a que o amante havia chegado. E nessa procura estimulada pelo "apagão" do título, a reconstituição da imagem (ou "o plano que falta", como é dito no filme) só pode ser concebida pela memória cinematográfica. Reconstituição que é também a quebra definitiva da auto-imagem do seu protagonista, representada pelo confronto violento entre este e o ecrã que exibe o vídeo do homicídio que cometeu de uma adolescente ingénua que conheceu naquela noite. Ao que o olho humano fecha, a íris maquinal abre. O que a memória humana apaga, a cinematográfica restitui. E por isso, bem cedo nesta narrativa é evocado o imortal aforismo godardiano: "E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo."

As referências não se estendem só a Hitchcock e Godard. O lado elíptico e oscilante (entre o presente e o passado, a realidade e a alucinação) de The Blackout é notoriamente reminiscente de 8 ½ (1962, aqui evocado num cartaz afixado num consultório psiquiátrico) que, tal como a obra de Ferrara, contém um lado ácido à indústria do cinema pela entrada dos vários patamares de (in)consciência de um artista frustrado e afogado numa crise existencial que perdura. Talvez seja com base nesse "afogamento" que se alicerce o plano final onde, num "mar de memórias" (ou antes, de uma memória) um abrandar de braços representa uma desistência irrevogável para a vida. Num derradeiro esforço, Matty parte então numa busca infernal e impossível pela reconciliação com os seus fantasmas ao mergulhar no oceano gélido. Gesto suicidário que é também uma cristalização tardia do seu auto-conhecimento, onde a redenção se encontra sobrepujada pela culpa. Uma última sobreimpressão sobre aquele mar contendo o encontro de Matty com a adolescente ("Did you miss me?", pergunta-lhe ela a ele) ao qual se segue o inevitável negro. Ao blackout psíquico junta-se o fade out cinematográfico. Assim cai uma estrela.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

"I guess those fellows have mothers too..."

Se é facto ou lenda, não sei, mas é o que está impresso.

Após a visualização de uma versão de Sunrise (Aurora, 1927) ainda em fase de pós-produção, John Ford afirmou numa entrevista que, não só esse era o maior filme alguma vez produzido, como acreditava veementemente que não surgiria um melhor nos 10 anos seguintes. Dito isto, partiu numa viagem a Berlim onde se encontrou com Murnau, o qual lhe ensinou alguns dos seus métodos de filmar. Motivado com as suas lições, qual aluno entusiasmado, o cineasta americano quis imediatamente aplicá-las, fazendo do seu filme seguinte uma homenagem ao mestre alemão. O resultado foi Four Sons (Os Quatro Filhos, 1928), drama onde os quatro discípulos do título partem para a Primeira Guerra (três para combater pela Alemanha, o último pela América) e é, para alguns, "o maior filme de Murnau não realizado por Murnau".

Onde começa a homenagem? Na fluidez dos travellings (mais abundantes que o habitual na filmografia Fordiana), no próprio enredo que parte de uma família alemã, na personagem do carteiro que bem poderia ser a de Emil Jaggins antes dos eventos de Der Letze Mann (A Última Gargalhada, 1924) e, finalmente, na força expressionista das fontes luzentes, prova da formação da viva personalidade vanguardista de Ford ("Lighting, as a matter of fact, is my strong point (...) my one boast", como disse em entrevista) que haveria de ficar manifestada de forma mais adensada nos mais célebres The Informer (O Denunciante, 1935) e The Fugitive (O Fugitivo, 1947).

Mas… ver a fraternidade que percorre a comunidade da aldeia germânica (o olhar prevalecente de Ford sobre "o coletivo", ao invés de "o indivíduo"), o uso da dança como ritual celebrativo e unificador da mesma (como em My Darling Clementine (A Paixão dos Fortes, 1946)), o impacto que exercem na memória as cenas de refeição (como em How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941)), o elo familiar afectado pela partida das entidades filiais para a guerra, bem como as suas repercussões na figura materna que fica (como em Pilgrimage (Peregrinação, 1933)), um não duvida da autenticidade do seu autor.

Four Sons é, assim, não "um filme de Murnau não realizado por Murnau", mas um filme de Ford que não deixa de ser uma homenagem a Murnau. E se houver dúvidas quanto à autenticidade nesta afirmação, basta pegar no lamento carregado do humanismo Fordiano que um dos soldados americanos solta quando, agachado nas trincheiras, ouve um inimigo alemão a chamar pela mãe: "I guess those fellows have mothers too..." É a frase para acabar com todas as guerras.




terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

"Look at the eyes"

"Look at the eyes," Ford replied when asked how one should watch a motion picture. He was giving us a clue about how to understand himself: "The secret is people's faces, their eye expression, their movements."
(...)
"Don't act with your chin. It's here [gesturing to the eyes]—here's where you think. Not with your chin, for Chrissake. Up here."




Pilgrimage (1933), John Ford