quarta-feira, 29 de março de 2023

Por um lado, sei que já não tenho estofo para o cinema cada vez mais sobrecarregado do Wes Anderson. Sobrecarregado de planos, sobrecarregado de diálogos, sobrecarregado de personagens, sobrecarregado de adereços, aquilo que era uma obra singular onde olho e coração, forma e conteúdo, imagem e palavra, caminhavam num mesmo sentido tornou-se, para mim, num mero bombardeamento de cenas visualmente rigorosas mas emocionalmente estéreis, uma corpulenta receita de esteróides feitos de composições opulentas, expressões "blasé" e papéis de parede coloridos que tornam a experiência de visualização num exercício cansativo de barroquismo maximalista.

Por outro lado, Scarlett Johansson.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Que a crítica de cinema enquanto actividade profissional tem os dias contados, não tenho, infelizmente, muitas dúvidas. Posso estar errado (quero estar errado), mas veremos o que acontecerá quando os veteranos de cá escolherem largar irreversivelmente as canetas: estarão os jornais para onde escrevem dispostos a renovar os seus quadros nesta secção? Ou, numa altura em que a própria subsistência da imprensa já viu melhores dias, e onde não escasseiam estratagemas para evitar colocar os "colaboradores" como efectivos, irão, pelo contrário, agradecer e assegurar a redução de custos? Nesta época onde proliferam e se atropelam as opiniões na cacofonia das redes sociais, e onde se dá uma incompreensível importância aos "influencers" ao ponto de convidá-los para as mesmas cerimónias que profissionais da indústria, que relevância cultural tem hoje o crítico de cinema a não ser para segmentos de nicho muito específicos?

Dito isto, A.O. Scott, crítico de cinema do NY Times até ontem, desistiu, oficialmente, do cargo que ocupou durante mais de 20 anos. As razões que levaram ao referido acto estão enumeradas nesta conversa, familiares pela frequência com que vieram a monopolizar os encontros sociais entre cinéfilos na última meia dúzia de anos: a omnipresença sufocante dos "franchises" de super-heróis nas salas, o efeito manada na legião de fãs no que toca à pouca autonomia intelectual e à incapacidade de aceitar a divergência de opiniões, a crescente desvalorização do papel do crítico, ou a indiferença algorítmica com que as plataformas misturam a arte com os conteúdos. Ouvi-la é presenciar a construção de um retrato infeliz (mas preciso) da mudança da paisagem cinematográfica nas últimas 3 décadas e do que diz dos espectadores que a percorrem. Chapéu ao A.O. Scott por ter escolhido sair pela porta grande e fazer do gesto uma necessária advertência. Possa ela ser ouvida antes que outros lhe sucedam.

sábado, 18 de março de 2023

Um amigo meu diz-me que ainda não viu o "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo". Digo-lhe que, embora tenha gostado, recomendo-o a ainda não se arriscar a vê-lo. A razão? Simples. Vi-o quando estreou em Abril passado e não nos últimos meses. O prazo de validade para uma visualização de mente aberta, livre e imparcial está temporariamente expirado, e se o "hype" era considerável há um ano, no entretanto atingiu uma tamanha dimensão gargantuesca que o espectador informado dificilmente não se verá forçado a entrar céptico e relutante à euforia. Há uma diferença abissal entre entrar numa sala sabendo que se vai ver um filme independente bem recomendado e um monopolizador das temporadas de prémios brutalmente publicitado. Não se reagirá ao filme, reagir-se-á às reacções que o filme suscitou. E, por isso, creio que a altura certa para se ver um filme é antes de este se transformar num fenómeno cultural ou após deixar de o ser. O que está entre um momento e outro pouco tem a ver com cinema.