terça-feira, 28 de novembro de 2023

 «Aconteceu-me uma coisa prodigiosa. Fui arrebatado até ao sétimo céu. Estavam lá reunidos todos os deuses. Foi-me concedido por especial graça o favor de realizar um desejo. "Queres tu", disse-me Mercúrio, "queres tu ter juventude, ou beleza, ou poder, ou uma longa vida, ou a mais bela rapariga, ou uma outra magnificência das muitas que temos na arca da quinquilharia - escolhe lá, mas só uma coisa." Fiquei baralhado por um instante, mas dirigi-me aos deuses em seguida: "Honoráveis contemporâneos, escolho uma única coisa - que possa sempre contar com o riso do meu lado."»

Søren Kierkegaard, «Ou-Ou - Um Fragmento de Vida (Parte I)». Trad. Elisabete M. de Sousa

domingo, 26 de novembro de 2023

A acreditar na possibilidade da alternância política ao centro, fui ouvir o discurso de abertura do Montenegro no congresso do PSD de ontem. E qual não é o meu espanto quando compreendo que a forte inspiração do seu "speechwriter" não foi Ted Sorensen, não foi Martin Luther King, mas sim Walt Disney, chamando Mortágua de "Cinderela" e afirmando que Pedro Nuno Santos acordou, um dia, ao espelho para dizer impulsivamente: "Espelho meu, espelho meu, quem decide um aeroporto mais rápido do que eu?".

Depois, fui ouvir o discurso de encerramento, também lido por ele. Fala em propostas para agradar ao eleitorado de esquerda: aumento das pensões, acesso gratuito ao ensino pré-escolar e reposição integral do tempo dos professores. Mas também em propostas para agradar ao eleitorado de direita: redução da carga fiscal e menor dependência de subsídios externos. E ainda refere que isto tudo, assim, é possível sem truques e sem colocar em causa o equilíbrio das contas públicas. Faz sentido a inspiração em Walt Disney. Um projecto que promete tudo isto e desta maneira só pode ter sido escrito por alguém que tenha como principal referência o Pinóquio.

sábado, 25 de novembro de 2023

Era o que faltava. Depois de sair desapontado do último Schrader e do último Woody (cineastas que habitualmente me entusiasmam), saio entusiasmado do último Petzold (cineasta que habitualmente me desaponta). E isto um ano depois de ter também saído entusiasmado do último Peele. E agora? Vou dar uma chance ao último Wes Anderson e descobrir que, afinal, engulo todas as palavras menos agradáveis que lhe dediquei na última década? Vou ver o novo Ridley Scott e sair da sala a gritar "Minha nossa, que obra-prima!"? É certo que a grande vantagem de não ser autorista está em permitir ser-se surpreendido onde menos se espera. Mas não precisa de ser ao ponto de fazer uma pessoa duvidar da sua identidade cinéfila desta maneira.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O amor na morte (A Fronteira do Amanhecer, Philippe Garrel)

Por Luís Miguel Oliveira

"A Fronteira do Amanhecer" foi acolhido no Festival de Cannes (onde, pela primeira vez, um filme de Philippe Garrel integrava a competição oficial) com bastante violência: há abundantes relatos de uma pateada monumental, e da indignação das gentes que abandonaram a sala antes de terminada a projecção. O que "à la longue" tem pouca ou nenhuma importância, Cannes já recebeu assim muitos filmes de que hoje ninguém se atreve a dizer mal nem em voz baixa.

Estariam os espectadores indignados pela "rendição" de Garrel ao cinema "convencional", pela confirmação da troca, sucedida em meados dos anos 80, de um cinema de "poesia", marginal e subterrânea, por um cinema de "prosa" e de argumento? Tememos bem que se tenha tratado do contrário, e que o "petit scandale" se tenha gerado a partir de tudo o que nele ainda reenvia para os cavernosos delírios, românticos e estupefacientes, do Garrel de outras décadas, e de tudo o que nele, se convencional é, não corresponde a convenções deste tempo.

Sucede que Garrel faz cinema "antigo", e há muito que não fazia um filme tão "antigo" como "A Fronteira do Amanhecer". Tão antigo que até integra convenções do mudo - aquela maneira de terminar as sequências com a íris a fechar-se, já não há ninguém (literalmente ninguém) que ainda se lembre de fazer aquilo; trucagens rudimentares, uma mulher fantasma que aparece e desaparece pelo efeito combinado de um simples jogo de luz e de um vidro espelhado; o romantismo doentio, o tom e a "psicologia" ao estilo de um poeta "fin de siècle"; o onirismo à Cocteau ("Orfeu") transposto para um contexto (lugares e personagens) marcadamente contemporâneo. Nada disto é, de facto, o gosto do dia. Mas Garrel é homem de ideias fixas e de absoluta fidelidade às suas paixões e às suas assombrações (e, o que vai dar quase ao mesmo, à sua biografia). E é isso que ele continua a filmar. Talvez se possa dizer que anda em processo de revisão. Com "Os Amantes Regulares" resolveu alguma coisa do seu lado "nouvelle vague" e "Maio de 68" - e por "resolveu" entenda-se que deixou lá o seu "duplo" (o filho Louis), adormecido, enquanto ele, Philippe, fez um filme sobre esse adormecimento. "A Fronteira do Amanhecer", que também é uma maneira de abandonar o seu "duplo" (que continua a ser Louis), volta-se para um lado mais irracional. O grande fantasma da vida de Garrel já teve um nome e um corpo: chamava-se Nico, e está em quase todos os seus mais belos filmes de 70. Um pouco como Sternberg à procura de Marlene, mas de modo mais retorcido e flagelatório (?), outros nomes e outros corpos vieram representar, mais ou menos explicitamente, esse fantasma.

Na Laura Smet deste filme, se mais nada, podemos ver uma sua lembrança. E na história entre ela (uma actriz) e Louis (um fotógrafo), que a ocupa primeira metade do filme (digamos, a metade "realista"), o desenho em traço largo (mas subtil, delicado, de um pudor que tem no plano em que ele cobre o mamilo que ela, desfalecida, desprevenidamente deixara à mostra, a melhor expressão e o melhor resumo) de uma relação de "amor irregular", irracional e autodestrutiva, eco amortecido da biografia Garrel-Nico. Louis afasta-se, e quando volta é para encontrar apenas um túmulo. Entramos então na segunda parte, "Orfeu" mas também um "Vertigo" mental. Louis encontrou uma rapariguita morena (Clémentine Poidatz), de luminosidade sadia, vão ter um filho - é o tempo de um "amor regular", problemas corriqueiros, toda a força da realidade. Mas também toda a força da irrealidade, a memória afectiva (e um pouco de culpa, de "culpa de sobrevivente") como um abismo negro mas reconfortante e tentador. Assombrado pelas aparições de Laura, que o vem lembrar das juras de amor eterno que ambos trocaram, e que no fundo lhe basta atravessar o espelho para que as juras se cumpram, Louis vai cedendo. E atravessa o espelho. O último plano, o plano em que Garrel (Philippe) mais longe está da sua personagem, como se para se desfazer de mais um duplo, é totalmente oferecido à fé do espectador: sim, reencontrou Laura, num mundo de sombras inacessível à câmara; ou não, era apenas um miúdo meio palerma que pagou caro o seu romantismo infantil. Vai dar ao mesmo. No cinema, pelo menos, vai sempre dar ao mesmo.

Público, 20/11/2008

domingo, 12 de novembro de 2023

Costuma-se dizer "nunca voltes ao lugar onde foste feliz". Por isso, sempre que passo pelo Areeiro, faço questão de visitar a minha faculdade: o Instituto Superior Técnico. E já não consigo precisar a partir de que momento é que, ao observar os vários estudantes universitários, as suas caras passaram a ter uma aparência consistentemente púbere, com penugens indiscretas a passar por barbas, acne ainda por desaparecer e morfologias análogas à dos meus 15 anos. Envelhecer também é isto: olhar para os novos rostos que atravessam os velhos espaços do nosso passado e ter a impressão de que o mundo se vai tornando numa gigantesca EB 2,3.

sábado, 11 de novembro de 2023

É difícil imaginar o que seriam os filmes de alguns cineastas sem os seus directores de fotografia (DPs). Que seria do "Citizen Kane" de Orson Welles sem as grandes angulares de Gregg Toland? Que seriam dos "noirs" de Anthony Mann sem as sombras de John Alton? Que seriam dos dramas políticos, épicos e eróticos de Bertolucci sem a luz quente de Vittorio Storaro? Há casos em que a colaboração entre um realizador e um DP transcende o de simples contributo para se transformar numa autêntica co-autoria de uma obra estética (e, por isso, Orson Welles fez questão do nome de Tolland aparecer no mesmo cartão dos créditos de "Citizen Kane" onde constava o seu). 

O trio "American Gigolo - Cat People - Mishima" é, talvez, o apogeu do estilo visual de Paul Schrader, onde as cores, luzes e composições servem de vigoroso alicerce para um formalismo arrojado que varia entre o estiloso, o pictórico, o expressionista e o onírico. Muito disso deve-se a John Bailey, DP ontem falecido e recordado, nos jornais, por "filmes de prestígio" (subentenda-se, filmes artisticamente convencionais nomeados aos óscares) que pouco fizeram uso dos seus talentos para trabalhar o impacto imagético de um plano como Schrader fez. Posteriormente, voltaram a reunir-se em 2 filmes esquecíveis onde esse desejo do delírio cromático e composicional já se encontrava ausente.  Mas, com esse trio, fica uma colaboração que, pelo menos para mim, não está muito distante de outras idênticas que ocupam o Olimpo da História do Cinema.




quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Tinha isto guardado para ser usado em tempo indefinido. Dado que vamos a eleições antecipadas, e como recordar é viver, lembremos, então, os melhores momentos dos debates das legislativas de 2022, com o firme desejo natalício de que as de 2024 nos presenteiem com ainda melhor material: 

"-O André Ventura acha que é o quarto pastorinho de Fátima.

-Tens inveja, não é?" Debate entre Francisco Rodrigues dos Santos (Chicão) e André Ventura

"O seu programa tem 9 páginas, André Ventura. Já vi trabalhos do secundário com maior densidade." João Cotrim de Figueiredo

"Um esquadrão de cavalaria à desfilada na sua cabeça não esbarra contra uma ideia, André Ventura." Chicão

"Sim, estaria disponível a integrar governo com o PAN, desde que o programa não contivesse nada que ferisse os nossos princípios nem uma daquelas vossas propostas mais bizarras, como as câmaras de videovigilância nos barcos de pesca durante o tempo em que estiverem na faina. É uma boa ideia para um reality show: o Big Brother Carapau." João Cotrim de Figueiredo

"Não faça generalizações, André Ventura." Moderadora Rosa de Oliveira Pinto

"Ó Francisco, não faça isso!" Moderadora Clara de Sousa para candidato Chicão

E, claro, sem ironia, esse momento extraordinário de viva retórica com musicalidade à Aaron Sorkin: "O programa de André Ventura fala de cidades zero vezes. Fala do interior zero vezes. Fala da Universidade zero vezes. Fala do mar zero vezes. Fala do ambiente zero vezes. Bola. E, depois, podemos dizer: 'Mas não! Fala das coisas que lhe interessam! Ele quer mudar a Constituição! Quer uma 4ª República!'. Como se esta fosse a 3ª, porque o Estado Novo nunca quis ser a 2ª. Constituição: zero vezes. Quer um regime presidencialista: zero vezes. Parlamento? Diz bem. Zero vezes. Assembleia: zero vezes. Deputado: zero vezes. Poluição: zero vezes. Língua portuguesa: zero vezes. Mulher aparece uma vez, para dizer que a família é constituída pela relação íntima entre um homem e uma mulher. Zero vezes violência doméstica. Zero vezes mulheres. Este é um programa que não tem nada para oferecer de futuro. E, por isso, pretende falar de propostas que são do século XIX." Rui Tavares

PS (post-scriptum, entenda-se):