domingo, 29 de outubro de 2023

Quando se é um rapaz introvertido de 9 ou 10 anos, a descoberta da série "Friends" tem um efeito transformador. Aqueles que a viram sabem de quem é a culpa: Chandler Bing, o membro do grupo genuinamente mais cómico que recorre, de forma sistemática, ao sarcasmo humorístico como mecanismo de comunicação e interacção social ("Não sou bom a dar conselhos. Estarias interessada num comentário sarcástico?", diz num dos episódios). Como o "Gato Fedorento" (série influenciada pelo "Friends" desde a origem do nome), Chandler ensina que o melhor sentido de humor está em saber olhar para qualquer coisa de um prisma original e inesperado.

Matthew Perry, o actor que o interpretou, fez por tantos millennials aquilo que o Ricardo Araújo Pereira fez por tantos jovens portugueses da altura: criou uma linguagem, uma imagem e uma maneira de estar que influenciaram uma geração. Agradecer pelos risos é pouco quando o que está em causa é mais do que isso: a formação de uma personalidade, em anos de juventude, que perdura para a vida inteira. Com Matthew Perry, aprende-se que o ego saudável é aquele que sabe rir de si próprio, que o humor é um elemento saudável para lidar com qualquer circunstância e que a genuína felicidade pode ser causada por uma simples piada. 

Apesar da aclamação continuada que a série recebe, e apesar de ter enveredado por outros projectos igualmente merecedores de atenção (o "Studio 60 on Sunset Strip" de Aaron Sorkin), o seu legado mais importante foi lançado o ano passado: a sua autobiografia, onde mostra que o actor capaz de causar tanta alegria andava a passar esses e outros anos em clínicas de reabilitação. É um retrato honesto, íntimo e comovente sobre a adicção. E é também dos livros mais engraçados que conheço. Que essa mistura entre graça e desgraça sirva de lição a tantos moralistas de hoje que afirmam que o humor tem limites e que não se brinca com coisas sérias.

sábado, 28 de outubro de 2023

Pegar no álbum que a tornou numa estrela pop internacional e numa das principais imperatrizes da indústria musical dos últimos 10 anos para lhe acrescentar 5 canções que eclipsam, em parte, as narrativas românticas joviais (mas nunca ingénuas, já se estava na casa dos 20, afinal) e os hinos de estádio feministas, dando palco às reflexões crepusculares de fins de relacionamento que, com a idade adulta e uma voz mais amadurecida, trazem acopladas a sua dose experiente de sabedoria e honestidade sentimental à espera de ser partilhada com quem ainda acredite que a música popular pode providenciar muito mais do que mero escapismo dançante. "1989" fica, assim, uma manifestação mais rica, densa e abrangente das capacidades da sua autora enquanto letrista e "storyteller". Já era um dos melhores álbuns de Taylor Swift. Sob a forma da "Taylor's Version", tornou-se, muito provavelmente, na sua obra-prima.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

3 notas sobre as alterações no espaço de comentário político da Sic Notícias

1) Sinto falta do "Sem Moderação". A seguir ao "Governo Sombra"/"Programa Cujo Nomes Estamos Legalmente Impedidos de Dizer", era o programa de debate político que mais apreciava. E pelas mesmas razões. Eram 4 amigos à beira de uma mesa, cada um com as suas experiências, ideologias e mundividências próprias, a reunirem-se para comentar os temas da semana, ora com mais ou menos sentido de humor, ora com mais ou menos referências culturais para ilustrarem os seus pontos. Não é incompreensível a estratégia da estação em dividir o quarteto em 2 duplas para dias diferentes, optando-se por um segmento confrontativo esquerda/direita. Mas, para isso, já há tantos semelhantes, a começar pelo "Linhas Vermelhas", onde as clivagens estão mais vincadas e o debate atinge níveis mais acirrados.

2) Falando no "Linhas Vermelhas", é uma pena a remoção do Pedro Delgado Alves às 4ªs feiras. Não é só pela inata simpatia que nutro por quem, como eu, é uma metralhadora retórica, disparando rajadas de palavras demasiado céleres para a maioria das pessoas. É também por ter sido um comentador capaz de enfrentar e ganhar à altivez e tendência sistemática para a interrupção do Miguel Morgado, se não num debate de conteúdo, pelo menos de forma. É penoso ver a condescendência com que este novo Miguel Prata Roque é tratado. E ele fica-se.

3) E o Pedro Nuno Santos, hã? Longe vai o ministro aguerrido, valentão e de peito para fora. Ao invés, cá está um deputado calmo, dócil, esporadicamente tímido. Prova de que até os mais bravos ficam facilmente domados quando se encontram frente-a-frente com a Nelma Serpa Pinto.

domingo, 22 de outubro de 2023

É de peso cinematográfico aquele travelling de 360º que reúne DiCaprio a De Niro (os dois actores, que é como quem diz as duas fases, que é como quem diz os dois cinemas, mais reconhecíveis da obra scorsesiana) pela primeira vez. É de peso cinematográfico aquelas imagens expressionistas feitas de fogo, silhuetas e desfoque num bravo momento de incêndio. É de peso cinematográfico toda a sequência de perguntas-respostas final no tribunal onde a câmara exclusivamente se foca, sem cortes, no rosto de DiCaprio. Mas é de uma leveza televisiva aqueles campos-contracampos totalmente convencionais nas cenas de diálogo, aquele acumular excessivo de personagens e enredos secundários que trazem mais gordura que densidade à história, aquela característica organização de uma obra por blocos temáticos e tonais que parecem tornar um filme numa mini-série onde as pontas dos episódios foram atadas entre si.

Era o Pedro Mexia que definia o "Gangues de Nova Iorque" como um empate entre o Scorsese e a Miramax. Não vejo razões para não definir "Assassinos da Lua das Flores" como um empate entre Scorsese e as plataformas.

domingo, 8 de outubro de 2023

Maravilhoso aquele momento de "O Sol do Futuro" onde um travelling de grande profundidade de campo acompanha a personagem de Nanni Moretti, ocupando ele o primeiro plano e, em último e ligeiro desfoque, a filmagem de uma execução por um plano genérico num plateau genérico para um filme genérico. Ao longe, ouve-se o tiro de pólvora seca, vê-se o sangue falso a saltar, e Moretti, bem nítido para o espectador, lá caminha, abstraído nas suas reflexões artísticas e filosóficas, resignado com a sua impotência diante aquilo que hoje se espera da arte que tanto idolatra, sem olhar para trás nem dar indícios do mínimo interesse quanto ao banal cenário de violência simulada entusiasticamente aplaudido pela equipa de rodagem. Para longe da vulgarização cinematográfica e da mediocrização estética marchar, marchar. Se não é o grande momento de cinema que privilegio em 2023, é porque ainda tenho as cicatrizes estomacais bem presentes desse murro fílmico no dito órgão que é o final do "Aftersun".