quinta-feira, 31 de março de 2022

Uma pessoa vai à secção de DVDs da Fnac do Oriente e, onde antes se deparava com prateleiras ocupadas por dezenas de filmes de diferentes géneros, vê agora canecas do Batman, carritos do 007 e mil e uma outras bugigangas. Se ainda há filmes? Alguns, mas cada vez menos. De forma incrementalmente aguda, a cultura do merchandising veio a substituir o cinema. É na secção de DVDs da Fnac que se encontra a melhor metáfora para descrever o mainstream cinematográfico das últimas décadas.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Dia mundial da poesia

 «Ai, um ganso daltónico,

Ai, um ganso pateta,

Porque és daltónico, meu ganso pateta,

Se Albufeira é assim um bocado iiiiiiiiiii?


Matei uma criança cheia de sarampo,

E enterrei-a ao lado do primo Joel.

Este bife está mal passado, senhor Antunes,

E o robalo não está fresco, 

Seu ganso daltónico.»

Bruno Nogueira in «O Último a Sair»

terça-feira, 15 de março de 2022

 Uma pessoa tenta procurar termos para descrever este texto do cinéfilo Jorge Silva Melo (1948-2022) e não consegue encontrar um que lhe faça o mínimo de justiça. Creio que foi por causa de situações destas que um outro grande cinéfilo inventou a palavra "inadjectivável". Recorro, então, a ela.

«Se há filmes que me fizeram mal?

Este.

Rio Bravo.

Mal em tudo: na vida, nos amores, na profissão, quando penso em fazer um filme, quando me ponho a escrever uma história, quando vou ao cinema, naquelas horas plenas (e ainda tão raras!) em que posso filmar ou trabalhar.

(...)

Há, é claro, a cena do terraço da Viagem em Itália (Tempio dello Spirito!). E há a cena do cigarro nos Only Angels; e a pancadaria John Wayne – Montgomery Clift no Red River.

Mas há esta cena aqui. E viesse Mephisto e se calhar eu cedia-lhe não à procura da juventude ou da Gretchen de tranças (que ideia!) mas só para saber viver assim.

Está lá o Dean Martin e torce-se de dores por falta de álcool. Vai sair – quer beber. (Beber para esquecer, beber para beber, beber para chamar a Lei, beber para se humilhar...).

O momento é tenso.

E Wayne sabe que Martin se perderá se beber.

'Anda daí dar uma volta.'

À noite?

Travelling e travelling. Martin num passeio, Wayne noutro. Noite de silêncio. Uma daquelas bolas de ramos vindas do deserto e do departamento de adereços liga o campo e o contra-campo antes de emigrar para o westem-spaghetti e se tornar num produto regional de Almeria. Silêncio, noite, ruídos ao longe, um batente que range, Wayne que pára, Martin que atravessa a rua e depois o burro que surge atrás de Wayne.

'Anda daí dar uma volta.'

Ainda no outro dia me disseram isso e não era por eu ir beber mas porque era noite e a vida se complicara, e o dia fora turvo e a esperança estava longe.

(...)

Se é verdade o que Hawks diz ao afirmar que quis fazer Rio Bravo num movimento de pura irritação contra O Comboio Apitou Três Vezes isso tem a ver com isto mesmo: esta moral que é mise-en-scène. Um homem só não vale nada; e o sal da vida não é a razão de um homem – mesmo que santo como o Cooper – mas sim o que de um homem passa a outro. As marcas que um olhar, um gesto, uma acção, uma piada, um convite se deixam gravar no corpo e no destino de um outro. E a determinação que cada um de nós cria nesse outro.

(...)

Mas como filmar a sério isto que se passa entre dois homens? Aquilo que a pura presença (ou seja: presença activa) de um provoca no outro – aquilo que o gesto de um revela no outro, aquilo que o decide e o faz mover?

Sejamos modestamente viris, é o que eu penso que diz Hawks.

Câmara para um, câmara para outro.

(...)

Não ter medo da simplicidade das formas.

Que é de homens simples (ou seja, bem complicados!) que aqui se trata.

E é esse o seu assunto: o peso do ser.

É por isso (eu diria: só por isso) que eu gosto do cinema.

Porque me dá conta disso porque sonho, porque aspiro.

Não sou eu que me posso salvar.

Alguém há-de vir para me dizer 'Anda daí dar uma volta.'

E viver assim os dias é (maldito filme!) esta espera»

http://www.cinemateca.pt/.../Documentos/RIO-BRAVO__JSM.pdf