Uma pessoa vai à secção de DVDs da Fnac do Oriente e, onde antes se deparava com prateleiras ocupadas por dezenas de filmes de diferentes géneros, vê agora canecas do Batman, carritos do 007 e mil e uma outras bugigangas. Se ainda há filmes? Alguns, mas cada vez menos. De forma incrementalmente aguda, a cultura do merchandising veio a substituir o cinema. É na secção de DVDs da Fnac que se encontra a melhor metáfora para descrever o mainstream cinematográfico das últimas décadas.
quinta-feira, 31 de março de 2022
segunda-feira, 28 de março de 2022
domingo, 27 de março de 2022
segunda-feira, 21 de março de 2022
Dia mundial da poesia
«Ai, um ganso daltónico,
Ai, um ganso pateta,
Porque és daltónico, meu ganso pateta,
Se Albufeira é assim um bocado iiiiiiiiiii?
Matei uma criança cheia de sarampo,
E enterrei-a ao lado do primo Joel.
Este bife está mal passado, senhor Antunes,
E o robalo não está fresco,
Seu ganso daltónico.»
Bruno Nogueira in «O Último a Sair»
terça-feira, 15 de março de 2022
Uma pessoa tenta procurar termos para descrever este texto do cinéfilo Jorge Silva Melo (1948-2022) e não consegue encontrar um que lhe faça o mínimo de justiça. Creio que foi por causa de situações destas que um outro grande cinéfilo inventou a palavra "inadjectivável". Recorro, então, a ela.
«Se há filmes que me fizeram mal?
Este.
Rio Bravo.
Mal em tudo: na vida, nos amores, na profissão, quando penso em fazer um filme, quando me ponho a escrever uma história, quando vou ao cinema, naquelas horas plenas (e ainda tão raras!) em que posso filmar ou trabalhar.
(...)
Há, é claro, a cena do terraço da Viagem em Itália (Tempio dello Spirito!). E há a cena do cigarro nos Only Angels; e a pancadaria John Wayne – Montgomery Clift no Red River.
Mas há esta cena aqui. E viesse Mephisto e se calhar eu cedia-lhe não à procura da juventude ou da Gretchen de tranças (que ideia!) mas só para saber viver assim.
Está lá o Dean Martin e torce-se de dores por falta de álcool. Vai sair – quer beber. (Beber para esquecer, beber para beber, beber para chamar a Lei, beber para se humilhar...).
O momento é tenso.
E Wayne sabe que Martin se perderá se beber.
'Anda daí dar uma volta.'
À noite?
Travelling e travelling. Martin num passeio, Wayne noutro. Noite de silêncio. Uma daquelas bolas de ramos vindas do deserto e do departamento de adereços liga o campo e o contra-campo antes de emigrar para o westem-spaghetti e se tornar num produto regional de Almeria. Silêncio, noite, ruídos ao longe, um batente que range, Wayne que pára, Martin que atravessa a rua e depois o burro que surge atrás de Wayne.
'Anda daí dar uma volta.'
Ainda no outro dia me disseram isso e não era por eu ir beber mas porque era noite e a vida se complicara, e o dia fora turvo e a esperança estava longe.
(...)
Se é verdade o que Hawks diz ao afirmar que quis fazer Rio Bravo num movimento de pura irritação contra O Comboio Apitou Três Vezes isso tem a ver com isto mesmo: esta moral que é mise-en-scène. Um homem só não vale nada; e o sal da vida não é a razão de um homem – mesmo que santo como o Cooper – mas sim o que de um homem passa a outro. As marcas que um olhar, um gesto, uma acção, uma piada, um convite se deixam gravar no corpo e no destino de um outro. E a determinação que cada um de nós cria nesse outro.
(...)
Mas como filmar a sério isto que se passa entre dois homens? Aquilo que a pura presença (ou seja: presença activa) de um provoca no outro – aquilo que o gesto de um revela no outro, aquilo que o decide e o faz mover?
Sejamos modestamente viris, é o que eu penso que diz Hawks.
Câmara para um, câmara para outro.
(...)
Não ter medo da simplicidade das formas.
Que é de homens simples (ou seja, bem complicados!) que aqui se trata.
E é esse o seu assunto: o peso do ser.
É por isso (eu diria: só por isso) que eu gosto do cinema.
Porque me dá conta disso porque sonho, porque aspiro.
Não sou eu que me posso salvar.
Alguém há-de vir para me dizer 'Anda daí dar uma volta.'
E viver assim os dias é (maldito filme!) esta espera»