domingo, 25 de junho de 2017

"Little Fugitive" e "400 Blows"

«Truffaut pede emprestadas a Little Fugitive algumas ideias, nem que episódicas, para compor as "escapadelas" do seu alter-ago Antoine Doinel (...). Desde logo a sequência em que Doinel usa o dinheiro do almoço para jogar pinball num café e para depois pagar uma volta na atordoante roda giratória (...) lembra a viagem de Joey pelas atracções da feira popular de Coney Island, especialmente a sua primeira viagem de carrossel (...). A seguir, replicando um gesto de Joey, [Doinel] dirige-se a uma fonte para lavar o rosto.
(...)
Na cena final de Os 400 Golpes vemos resquícios dos instantes derradeiros de Little Fugitive (...) Doinel corre sozinho na praia deserta em direcção ao mar, contempla-o rapidamente pela primeira vez e vira-se para a câmara.»
Luís Mendonça, Fotografia e Cinema Moderno (Edições Colibri, 2017)

«A nossa Nova Vaga nunca teria existido se não fosse este jovem americano Morris Engel, que nos mostrou o caminho para a produção independente deste belo filme.»
François Truffaut

Em cima: Les 400 Coups (1959), François Truffaut
Em baixo: Little Fugitive (1953), Morris Engel, Ray Ashley e Ruth Orkin






segunda-feira, 19 de junho de 2017

Guia rápido para fazer um filmaço de ação

1. Arranje um protagonista taciturno, com muito estilo e de quem nada saibamos do background (o mistério é essencial);
2. Remova da intriga tudo o que seja visto como secundário (estudos político-sociais, reflexões da sociedade contemporânea e eventuais balelas "olhem, sou para ser levado tão a sério" do género);
3. Trabalhe a luz de uma maneira minuciosa;
4. Use a cor e não tenha medo de chamar a atenção para ela;
5. Verifique se cumpriu o ponto 1.
6. Filmes espetaculares cenas de perseguição de carros com calma, alternando entre pontos de vista cidade-interior da viatura-frente do carro ao nível da estrada, com uma duração razoável para cada plano (cortes rápidos provocam enxaquecas);
7. Use o grande plano somente e estritamente quando necessário;
8. Arranje uma rapariga bonita, mas também misteriosa e, de preferência, não dada a sentimentalismos;
9. Certifique-se, uma vez mais, que tem o ponto 1. cumprido;
10. Se o seu filme falhar no box office, não for particularmente louvado pela crítica americana e ficar reservado com o estatuto de culto, crescendo a sua reputação ao longo dos anos, parabéns, completou uma obra-prima.












... imagens do The Driver (O Profissional, 1978) de Walter Hill. E depois venham-me cá com o Refn e o raio que o parta.

Philip Kaufman, entre o bestial e a besta

Só recentemente comecei a ler Henry Miller, prazer que sempre me foi negado quando era mais novo derivado do cariz erótico da sua literatura. No seu romance Moloch encontrei uma frase solta que me prendeu e que cito de memória: 

Não se brinca com o corpo de uma mulher como se fosse uma guitarra.

Poderia bem ter-me passado ao lado tivesse eu a lido há um ano ou dois, mas recordei-me daquele plano simbólico, quase incompreensível e que não passa despercebido que está no Henry & June (1990) de Philip Kaufman, do qual só tive a oportunidade de visualizar há uns meses. Aí, num grande plano da mão esquerda, a personagem de Fred Ward (a interpretar o próprio Henry Miller) acaricia o seio da mulher, June (Maria de Medeiros). Num cross dissolve nada discreto, a imagem desta carícia matrimonial acaba sendo substituída por... justamente uma guitarra, tocada por uma personagem que se encontra num jardim vizinho.

Ora, isto para mim representa uma de duas coisas: ou Kaufman construiu um filme ilustrando frases soltas de vários romances de Miller para falar do próprio escritor (o que o faz, senão um realizador com uma ideia brilhante, pelo menos original), ou então que não percebeu nada da filosofia das suas personagens (pelo menos, desta em questão que é supostamente semi-autobiográfica, portanto, semelhante à de Miller), tendo ido justamente contra ela. Tenho assim Kaufman entre o bestial e a besta e tudo por causa do mesmo plano.

Talvez isto não passe de uma mera casualidade e ambos sejam apenas grandes apreciadores de guitarras e mulheres... Seja como for, a grande falha aqui é minha que ainda não li Miller o suficiente.


Henry & June (1990), Philip Kaufman

Medium Long Shot

Plano de conjunto para uns, plano de meio conjunto para outros, opto pela forma mais abreviada. Para aqueles que estão, para aqueles que vierem, partilho este enquadramento.