segunda-feira, 23 de setembro de 2019

sábado, 21 de setembro de 2019

"Qu'est-ce que le cinéma?"

Leio o novo livro do amigo e companheiro de armas walshiano Luís Mendonça, História da Fotografia - Ao Encontro das Imagens, e sorrio com a referência a um momento que me diz muito, vindo de um filme que guardo com especial calor na memória e no coração.

Já escrevi algures sobre como a semente da flor da minha cinefilia foi plantada aos 10 anos com o "filme da minha vida", The Kid do Chaplin. Mas só muito mais tarde compreendi o que levou esta semente a germinar, a criar raízes fortes e um caule extenso, findado por um número de pétalas maior do que alguma vez imaginaria, ao invés de, como tantas outras actividades que descobrimos e por que nos apaixonamos, mas só transitoriamente, ter sido deixada em terreno infértil e sem granjeio. Essa resposta creio que só a tive exactamente uma década depois com o que considero o "segundo filme da minha vida", Yi Yi do Edward Yang, um épico íntimo feito de experiências comuns do dia-a-dia, que segue uma família de Taiwan ao longo de um ano. 

Na cena referida pelo Luís, o pai e o filho (um rapaz pequeno, dotado daquela curiosidade juvenil, capitosa, mas ternurenta, que cria um peso filosófico nas coisas mais inusitadas e que tomamos como esclarecidas) estão num carro a falar, com o pai a tentar acalentar as perguntas da criança que o incentivam à reflexão. O filho faz duas questões cruciais. À primeira, "Pai, como posso ver o que tu vês, e como podes ver o que vejo?", o pai responde, "Boa pergunta. Se calhar é por isso que precisamos de uma câmara." À segunda, "Pai, o que é a verdade?", o progenitor replica, "Bom, a verdade é aquilo que tu vês." Mas esta segunda resposta não se fica por aqui, e o pequeno replica, "Se assim é, eu só vejo metade da verdade?", dado que uma pessoa só está apta a ver o que está à sua frente, e não o que está atrás de si. O pai não tem resposta. A consequência deste curto, mas nada superficial debate familiar, leva a que o miúdo arranje, de facto, uma máquina fotográfica. Com que finalidade? A de fotografar as nucas das pessoas e dar aos retratados os insólitos resultados, dizendo-lhes "É para que possas saber toda a verdade sobre ti próprio."

Dias depois de ter visto este filme, perguntaram-me o que era para mim o cinema. Respirei fundo, puxei pela memória, e contei estes momentos de forma mais ou menos fiel à do parágrafo anterior, dizendo que, na minha perspectiva, o cinema passa justamente pelas duas questões do rapaz e a subsequente acção deste. À primeira pergunta, disse que a associação era evidente, o cinema leva à pluralidade de pontos-de-vista sobre um dado tema, assunto, facto, enfim, a compartilha de uma visão do mundo a que as pessoas voluntariamente abrem a sua mente e confrontam com a sua. Mas é a segunda questão, onde está menos evidente a ligação, mas mais presente na forma como se relaciona com as fotografias realizadas pelo filho, que mostra como o melhor cinema, tal como a melhor literatura, também existe enquanto ferramenta para a descoberta da verdade, para o aprofundamento do conhecimento de um indivíduo sobre o que o rodeia, mas essencialmente sobre si próprio. Que é um meio de soltar menos a questão "O que é isto?" do que "Quem sou eu?", e estar apto, pela identificação, a providenciar mais respostas do que ao princípio se esperaria. Ou, de maneira mais sucinta, que ao filmar os rostos das outras pessoas, tem na verdade a câmara apontada às nossas nucas.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Textos Setembro 2019 e uma história

Dado o meu jejum de facebook por estes dias, quero só deixar aqui gravado este par de textos. Mas o que mais me interessa é contar uma das minhas histórias de eleição.

Entrei na fase crepuscular da blogosfera, onde já ocorria o fluxo migratório para as redes sociais. No entanto, fui a tempo de apanhar o saudoso As Aranhas do Luís Miguel Oliveira (que está desactivado, pelo menos para acesso público). Quando o descobri, e dada o particular talento do Luís para o storytelling, para mais sob uma perspectiva cinéfila, tornou-se a mais importante referência cinematográfica online que tinha, a qual devorei desde a primeira à última publicação de forma compulsiva, como quem come uma caixa de chocolates que encontra perdida no fundo da estante.

Uma das que mais me recordo é a da ocasião em que o Luís entrevistou o Sydney Pollack. Eram os anos 90, o Pollack estava a dar entrevistas de 10 minutos em massa num hotel, onde cada crítico se encontrava num quarto individualizado, que o Pollack percorria e visitava pacientemente. O Luís não queria colocar as questões habituais e foi bastante criterioso a defini-las. Quando chegou a sua vez, o Pollack entrou, sentou-se, ouviu-o atentamente e absorveu com cuidado cada pergunta, reflectindo e respondendo com o mesmo cuidado com que tinham sido feitas. Bateu o relógio, e o Pollack teve que partir. Estava prestes a sair do quarto quando, de súbito, parou, virou-se para o Luís e disse, muito honestamente:

"-Challenging questions."

Se a memória não me falha, o Luís contou esta história no dia em que o Pollack faleceu, e dado que para ele (e também, já agora, para mim), o realizador não fazia mais do que um "cinema do papá" nem por isso bom, concluiu com o seguinte remate: "Sydney Pollack era melhor pessoa do que melhor cineasta. Não há muitos realizadores de quem se possa dizer o mesmo."

Dito isto, Amazing Grace, co-realizado pelo Pollack, está nas salas ao fim de quase meio-século fechado em cofres, e tanto o Luís como eu gostamos.

Comprimidos Cinéfilos (o meu contributo é o do Blinded by the Light):
http://www.apaladewalsh.com/2019/09/comprimidos-cinefilos-julho-e-agosto-2/

Amazing Grace:
http://www.apaladewalsh.com/2019/09/amazing-grace-maquina-do-tempo/
Havia um vídeo, filmado modestamente com um telemóvel, ou então com uma câmara de filmar já mais do que obsoleta, com esta canção num concerto qualquer. Antes de a cantar, o Springsteen (para mim, o maior cineasta que não chegou a sê-lo) começava, como típico nele, com um pequeno monólogo alicerçado num pedacinho de sabedoria existencial. Dizia ele:

"This is a song about self-knowledge... which is kind of a funny thing... because the less of it you have, the more you think you have, you see? That's its twisted blessing. When I was 22 or 23 I had a shitload of self-knowledge. I lost along the way, somewhere. All right... this is about losing it and finding it too late."

Os meses passaram e descobri que o vídeo foi removido. Por sorte, tinha transcrito o dito monólogo, palavra por palavra, para um rascunho daqui. A efemeridade das coisas entra em acção, fico eu para contar a história. Algo que se vai tornando cada vez mais frequente deste lado por estes dias.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Graças à renoiriana Inês Lourenço (que forneceu o formato físico, pelo qual estou agradecido), está finalmente disponível uma cópia digital da autobiografia do Jean Renoir, numa estimável tradução inglesa.