domingo, 25 de junho de 2023

Olha-se para os filósofos como gente sisuda, séria e circunspecta. Mas um dos grandes filósofos cínicos da História, Diógenes de Sinope, derruba em tudo esse estereótipo. Eis um filósofo "punk", a quem definiram como "Sócrates enlouquecido", que escolheu voluntariamente ser sem-abrigo, que vilipendiava todas as conveniências e estatutos sociais, que andava de lanterna acesa durante o dia porque estava (citando-o) "à procura de um homem honesto", e que possuía um sentido de humor acrimonioso capaz de originar uma série de acontecimentos anedóticos. Eis alguns deles:

Quando Platão leccionava que um homem era um "ser bípede sem penas", Diógenes foi buscar uma galinha, depenou-a, aproximou-a do professor e da sua turma e vociferou: "Olhem! Um homem!"

Quando Alexandre, o Grande, tendo já ouvido falar do comportamento excêntrico de Diógenes, e apanhando-o deitado na rua, disse-lhe, "Pede-me o que tu quiseres", levou como resposta, "Quero que me saias da frente. Estás-me a tapar o Sol."

Quando lhe asseveraram, "Os habitantes de Sinope condenaram-te ao exílio", replicou, "Sim, e eu condenei-os a ficarem no sítio onde estão."

Quando, numa festa, lhe disponibilizaram um copo de vinho, não hesitou em deitá-lo fora. Ao ser repreendido, justificou-se, "Se eu o bebesse, não seria só o vinho que estaria perdido, mas eu também."

Quando praticava o onanismo, fazia-o em público, e dizia, "Ah, se fosse possível acabar com a fome esfregando o estômago."

Quando pedia dinheiro a alguém e este se mostrava indeciso, proferia, "Estou-te a pedir dinheiro para me alimentar, não para me pagares o funeral."

Quando pedia dinheiro a uma estátua e lhe perguntavam o porquê de tão inútil gesto, respondia, "Estou a ganhar prática em ser rejeitado."

Quando vozeava, "Ei, homens!", e as pessoas vinham ter com ele, gritava-lhes, "Eu pedi homens, não escória!"

Quando foi convidado para a casa luxuosa de um homem rico e requisitaram-lhe que não cuspisse, ele expectorou para a cara do anfitrião, afirmando, de seguida, que não encontrava pior sítio para o fazer.

E ainda há quem ache a Miley Cyrus "rebelde" por lamber martelos.

Diógenes (1860), Jean-Léon Gérôme

Talvez a única coisa boa que um mercado cinematográfico sobressaturado de filmes de super-heróis distribuídos pela Disney tenha trazido seja o estímulo à diferenciação na concorrência. Se estúdios de relativa menor dimensão querem encontrar sucesso artístico, crítico e financeiro, sem recorrerem à estratégia de serialização "ad infinitum" que caracteriza o MCU, são forçados a puxar pela criatividade, pelo risco e pela experimentação. Como tal, "Logan" (FOX) foi beber a sua inspiração aos westerns cansados de Clint Eastwood, "Joker" (Warner Bros. / DC) ao cinema desconfortável da Nova Hollywood e "Spider-Man: Into the Spider-Verse" (Sony) aos filmes psicadélicos dos anos 60 e 70. 

A sequela deste último mantém a tendência do original e continua a elevar as potencialidades do cinema de animação para patamares arrojados e estilisticamente anárquicos, misturando correntes pictóricas tão diferentes como impressionismo, arte de rua ou "pop art", e fazendo uso de dispositivos cinematográficos tão diversificados como "split screens", "jump cuts" ou inversões do eixo horizontal de câmara. Se é grande cinema (e, para mim, é), fica a cada um fazer essa avaliação. Mas creio que é consensual que se trata, pelo menos, da maneira mais saudável, barata e segura de ter uma "trip" psicadélica.

Spider-Man: Across the Spider-Verse (2023), Joaquim Dos Santos, Kemp Powers e Justin K. Thompson

sábado, 17 de junho de 2023

O católico negacionista diz que a Inquisição da sua fé nunca matou ninguém (as que mataram, alega, foram as Protestantes). 

O católico negacionista afirma que os livros escolares de História onde o aprendemos foram escritos por autores tendenciosos com opiniões próprias sobre a religião. 

O católico negacionista exprime que os livros escolares de História são livros de lendas para rapazinhos. 

O católico negacionista declara que não devo confiar nos meus professores de História porque não tenho provas de que eram os alunos mais brilhantes dos seus cursos.

O católico negacionista profere que a Inquisição não atrasou o progresso da ciência. 

O católico negacionista argumenta que Galileu não foi forçado a abjurar os seus estudos quanto ao modelo heliocêntrico, mas apenas as ligações que afirmava que tinham com a Bíblia.

O católico negacionista proclama que a Igreja não encobriu o escândalo da pedofilia e só se limitou a respeitar a privacidade da confissão dos seus servidores. 

O católico negacionista opina que alguém só pode ter uma opinião formada e válida sobre a Inquisição se ler cada acta inquisitorial da altura. 

O católico negacionista leu. 

O católico negacionista sabe. 

O católico negacionista grita que só respeita o pluralismo de opiniões se elas tiverem sido fundamentadas nas suas referências. 

O católico negacionista tira-me da treva da ignorância com a luz da sua sapiência. 

O católico negacionista que vá para a Maria Madalena que o pariu.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Disseram-me que falo como escrevo. Ao princípio, tive a presunção de achar que o curioso comentário se tratava de um subtil elogio. Mas depois compreendi o seu verdadeiro significado. É que a minha caligrafia está só meio ponto acima da de médico. E a minha dicção, muito abaixo da dos locutores que relatam os efeitos secundários em anúncios farmacêuticos.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Cormac McCarthy (1933 - 2023)

«Nunca dorme, diz ele. Diz que nunca vai morrer. Faz uma vénia aos músicos e saracoteia-se às arrecuas e atira a cabeça para trás e a plenos pulmões e é muito benquisto entre os presentes, o juiz. Agita o chapéu e a cúpula lunar do seu crânio passa sob os candeeiros em reflexos pálidos e ele ginga para cá e para lá e apodera-se de uma rebeca e faz piruetas e rodopia uma vez, duas vezes, a dançar e a tocar rebeca ao mesmo tempo. Tem o pé leve e ligeiro. Nunca dorme. Diz que nunca vai morrer. Dança na luz e nas sombras e é muito benquisto. Nunca dorme, o juiz. Dança, dança sempre. Diz que nunca vai morrer.»

«Meridiano de Sangue», Cormac McCarthy. Trad. Paulo Faria

domingo, 11 de junho de 2023

Até a realizar pornografia o Ferrara faz questão de deixar patente as suas influências católicas. Isto, sim, é autorismo hardcore. Feito por alguém de fé muito firme.*



9 Lives of a Wet Pussy (1976), Abel Ferrara

*Antes que alguém mais puritano e susceptível pense, "Então, mas este depravado vê pornografia, agora?", respondo citando David Thomson, "The Big Screen", pág. 432: "Vejo-os [filmes pornográficos] enquanto historiador ou comentador de cinema, o que significa que tento descrever a experiência cinematográfica. Tal como se estivesse a escrever sobre Ophuls, Renoir, ou Welles, que envolvem a experiência fílmica de um momento particular." É mais ou menos aquilo de que se trata aqui, 'tá?

terça-feira, 6 de junho de 2023

Tenho sido um relativo evangelizador desta nova fase de Abel Ferrara - do seu sentido de urgência, da sua vertente experimental, do seu caos controlado, em suma, da sua liberdade cinematográfica - mas o "Padre Pio", minha nossa, é razão para declarar a apostasia.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

O mais curioso de se ver no vídeo do Apple Vision Pro (os recém-anunciados óculos de realidade mista da maçã multinacional norte-americana) é a regularidade com que os seus vários utilizadores aparecem completamente sós. Certo, há 2 momentos em que tal não acontece: quando uma rapariga é interrompida para falar com uma amiga que suspende a sua reclusão (o que pouco tem a ver com o dispositivo) e quando um pai filma as brincadeiras das suas filhas (o que nem é a principal funcionalidade deles, embora, inevitavelmente, levante questões interessantes sobre se o futuro normal do entretenimento audiovisual não passará por este uso extensivo do ponto-de-vista do actor). Mas o entusiasmo com que as pessoas vêem cinema, desporto, ou apenas fotografias dos seus álbuns pessoais é um entusiasmo solitário, atomizado, impossível de ser compartilhado com os mais próximos por não estarem instrumentalmente dotados para verem o que o outro vê. Coisas que até aqui tomávamos como normais, acessíveis com qualquer televisão ou computador (a comédia romântica com a parceira, o jogo de futebol com os amigos, a exposição à família das fotografias das últimas férias), tornam-se, com este portentoso aparelho, simplesmente irrealizáveis. A afirmação do prazer implica a negação da partilha real da sua experiência. É um óptimo reflexo que confirma o futuro da sociedade que gradualmente tem vindo a surgir: quanto mais tecnologicamente musculada, mais gregariamente se encontra subnutrida.

sábado, 3 de junho de 2023

Fuma. Bebe. Fuma. Beija a Nina Hoss. Bebe. Fuma. Bebe. Toma café com a Robin Wright. Fuma. Fuma. Bebe. Passeia de barco pelos rios de Hamburgo. Bebe. Bebe. Fuma. Tranca-se numa sala com a Rachel McAdams. Fuma. Bebe. Bebe. Janta fora com a Robin Wright. Fuma. Fuma. Fuma. Fuma. Fuma. "A Most Wanted Man" foi o último filme protagonizado e estreado em vida com Philip Seymour Hoffman, poucas semanas antes de ter morrido de uma overdose. Não parece ter mal aproveitado o tempo que lhe devotou.