terça-feira, 13 de novembro de 2018

Creio que há uma fase na vida de qualquer pessoa em que se sonha ter aquela profissão quase impossível de se alcançar com sucesso. Aquele período entre os 7 e os 14 anos em que julgamos que poderemos ser o próximo Ronaldo, o de Niro português ou a nova Sara Sampaio. Como o geek que fui nessa altura, a profissão que almejava era a de escritor de bds. Que queriam? Se havia secção que passava tempo na fnac, quando era miúdo, era a dos livros dos quadradinhos, onde fazia tempo nos sofás a folhear cada um dos cobiçados volumes com o entusiasmo de uma criança numa loja de brinquedos. Para além disso, é triste de admitir, mas durante anos a única barraca da Feira do Livro que me interessava era a da Devir.

Fiz com isso uma colecção enorme que ainda guardo, Lucky Luke, Astérix, Calvin & Hobbes, Quino, Alan Moore... mas principalmente super-heróis. De todos, o meu favorito era o aranhiço, o rapazito de classe média, inseguro, e que, na sua angústia existencial, tentava conciliar a salvação do mundo com o arranjar dinheiro para ajudar a tia no pagamento da renda ao fim do mês. Porque, acredito, era isso que o fazia especial, o demonstrar ter um verdadeiro bom coração quando não tinha o fato vermelho e azul vestido. E era isso que fazia do recém-falecido Stan Lee o maior dos escritores de banda-desenhada, a capacidade de provocar nos outros uma empatia extraordinária com uma figura da sua imaginação, partindo para isso de pessoas fragilizadas com os seus sacrifícios individuais quotidianos, os quais nunca adivinharíamos que pudessem fazer parte da vida de um super-herói. É isso que faz do Homem-Aranha o super-herói universal por excelência (é o mais vendido, caramba), não a capacidade invejável de trepar paredes, mas o facto de por baixo daquela máscara estar uma pessoa com que todos se identifiquem. E acredito que, no interior de cada número que Stan Lee tenha assinado o argumento, se possa encontrar esta lição, entre tantas outras: a de que para se ser um verdadeiro herói, basta apenas ser-se boa pessoa. Precisamos de quem nos relembre isso hoje em dia.

Fica-lhe o meu agradecimento junto a milhares de páginas por folhear.


domingo, 11 de novembro de 2018

Inoperável (ou, dos amores obsessivos de M. Swann):

«Pensava quase com espanto: "É ela", como se de repente nos mostrassem exteriorizada diante de nós uma das nossas doenças e não a achássemos semelhante ao que sofremos. "Ela", tentava Swann perguntar o que era; pois há uma semelhança entre o amor e a morte, mais do que essas tão vagas que sempre se repetem; fazer-nos interrogar mais a fundo, no medo de que a sua realidade se oculte, o mistério da personalidade. E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, esse amor estava tão estreitamente ligado a todos os hábitos de Swann, a todos os seus actos, ao seu pensamento, à sua saúde, ao seu sono, à sua vida, até àquilo que desejava depois da morte, era de tal modo um só com ele, que não seria possível arrancá-lo sem o destruir a ele quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor já não era operável.»

Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Swann, Marcel Proust. Tradução de Maria Gabriela de Bragança.





Swann in Love (1984), Volker Schlöndorff