sábado, 21 de setembro de 2019

"Qu'est-ce que le cinéma?"

Leio o novo livro do amigo e companheiro de armas walshiano Luís Mendonça, História da Fotografia - Ao Encontro das Imagens, e sorrio com a referência a um momento que me diz muito, vindo de um filme que guardo com especial calor na memória e no coração.

Já escrevi algures sobre como a semente da flor da minha cinefilia foi plantada aos 10 anos com o "filme da minha vida", The Kid do Chaplin. Mas só muito mais tarde compreendi o que levou esta semente a germinar, a criar raízes fortes e um caule extenso, findado por um número de pétalas maior do que alguma vez imaginaria, ao invés de, como tantas outras actividades que descobrimos e por que nos apaixonamos, mas só transitoriamente, ter sido deixada em terreno infértil e sem granjeio. Essa resposta creio que só a tive exactamente uma década depois com o que considero o "segundo filme da minha vida", Yi Yi do Edward Yang, um épico íntimo feito de experiências comuns do dia-a-dia, que segue uma família de Taiwan ao longo de um ano. 

Na cena referida pelo Luís, o pai e o filho (um rapaz pequeno, dotado daquela curiosidade juvenil, capitosa, mas ternurenta, que cria um peso filosófico nas coisas mais inusitadas e que tomamos como esclarecidas) estão num carro a falar, com o pai a tentar acalentar as perguntas da criança que o incentivam à reflexão. O filho faz duas questões cruciais. À primeira, "Pai, como posso ver o que tu vês, e como podes ver o que vejo?", o pai responde, "Boa pergunta. Se calhar é por isso que precisamos de uma câmara." À segunda, "Pai, o que é a verdade?", o progenitor replica, "Bom, a verdade é aquilo que tu vês." Mas esta segunda resposta não se fica por aqui, e o pequeno replica, "Se assim é, eu só vejo metade da verdade?", dado que uma pessoa só está apta a ver o que está à sua frente, e não o que está atrás de si. O pai não tem resposta. A consequência deste curto, mas nada superficial debate familiar, leva a que o miúdo arranje, de facto, uma máquina fotográfica. Com que finalidade? A de fotografar as nucas das pessoas e dar aos retratados os insólitos resultados, dizendo-lhes "É para que possas saber toda a verdade sobre ti próprio."

Dias depois de ter visto este filme, perguntaram-me o que era para mim o cinema. Respirei fundo, puxei pela memória, e contei estes momentos de forma mais ou menos fiel à do parágrafo anterior, dizendo que, na minha perspectiva, o cinema passa justamente pelas duas questões do rapaz e a subsequente acção deste. À primeira pergunta, disse que a associação era evidente, o cinema leva à pluralidade de pontos-de-vista sobre um dado tema, assunto, facto, enfim, a compartilha de uma visão do mundo a que as pessoas voluntariamente abrem a sua mente e confrontam com a sua. Mas é a segunda questão, onde está menos evidente a ligação, mas mais presente na forma como se relaciona com as fotografias realizadas pelo filho, que mostra como o melhor cinema, tal como a melhor literatura, também existe enquanto ferramenta para a descoberta da verdade, para o aprofundamento do conhecimento de um indivíduo sobre o que o rodeia, mas essencialmente sobre si próprio. Que é um meio de soltar menos a questão "O que é isto?" do que "Quem sou eu?", e estar apto, pela identificação, a providenciar mais respostas do que ao princípio se esperaria. Ou, de maneira mais sucinta, que ao filmar os rostos das outras pessoas, tem na verdade a câmara apontada às nossas nucas.

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