sexta-feira, 24 de março de 2023

Que a crítica de cinema enquanto actividade profissional tem os dias contados, não tenho, infelizmente, muitas dúvidas. Posso estar errado (quero estar errado), mas veremos o que acontecerá quando os veteranos de cá escolherem largar irreversivelmente as canetas: estarão os jornais para onde escrevem dispostos a renovar os seus quadros nesta secção? Ou, numa altura em que a própria subsistência da imprensa já viu melhores dias, e onde não escasseiam estratagemas para evitar colocar os "colaboradores" como efectivos, irão, pelo contrário, agradecer e assegurar a redução de custos? Nesta época onde proliferam e se atropelam as opiniões na cacofonia das redes sociais, e onde se dá uma incompreensível importância aos "influencers" ao ponto de convidá-los para as mesmas cerimónias que profissionais da indústria, que relevância cultural tem hoje o crítico de cinema a não ser para segmentos de nicho muito específicos?

Dito isto, A.O. Scott, crítico de cinema do NY Times até ontem, desistiu, oficialmente, do cargo que ocupou durante mais de 20 anos. As razões que levaram ao referido acto estão enumeradas nesta conversa, familiares pela frequência com que vieram a monopolizar os encontros sociais entre cinéfilos na última meia dúzia de anos: a omnipresença sufocante dos "franchises" de super-heróis nas salas, o efeito manada na legião de fãs no que toca à pouca autonomia intelectual e à incapacidade de aceitar a divergência de opiniões, a crescente desvalorização do papel do crítico, ou a indiferença algorítmica com que as plataformas misturam a arte com os conteúdos. Ouvi-la é presenciar a construção de um retrato infeliz (mas preciso) da mudança da paisagem cinematográfica nas últimas 3 décadas e do que diz dos espectadores que a percorrem. Chapéu ao A.O. Scott por ter escolhido sair pela porta grande e fazer do gesto uma necessária advertência. Possa ela ser ouvida antes que outros lhe sucedam.

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