sexta-feira, 7 de agosto de 2020

«-Chardin - disse Charley. - Sim, já o conheço. 
-Mas já olhou alguma vez para ele? 
(...) 
-Isso? - exclamou Charley com espanto. - Um pão e um jarro de vinho? É verdade que estão muito bem pintados. 
-Sim, tem razão. Estão muito bem pintados. Estão pintados com piedade e com amor. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho. É o pão da vida e o sangue de Cristo, mas não já negados aos que se finam de fome e de sede, ou servidos em óbolos pelos padres em determinadas ocasiões. É o sustento quotidiano da Humanidade sofredora. É tão humilde, tão natural, tão amigo! É o pão e o vinho dos pobres que só pedem que os deixem em paz, que lhes permitam trabalhar e comer em liberdade o seu simples passadio. É o grito dos desprezados e dos rejeitados. Diz-nos que, por maiores que sejam os seus pecados, os homens, no fundo, são bons. Esse pão e esse jarro de vinho são símbolos das alegrias e dos pesares dos mansos e humildes. Eles pedem-nos compaixão e afecto. Dizem-nos que esses homens são da mesma carne e do mesmo sangue que nós. Dizem-nos que a vida é curta e áspera, e a sepultura fria e solitária. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho: é o mistério do destino do homem na terra, do seu anseio por um pouco de amizade e um pouco de amor, e da sua humilde resignação quando vê que até isso lhe tem de ser negado.» 

«Férias de Natal», W. Somerset Maugham. Tradução de Leonel Vallandro

Still Life with Bottle, Glass and Loaf (séc. XIX), Imitador de Jean-Siméon Chardin* 
*Mas, na altura do romance de Maugham, a autoria era atribuída ao próprio Chardin. E esta divergência em nada inviabiliza a análise no texto.

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