domingo, 18 de fevereiro de 2024

Diário de Singapura: Dia 7

Estava sozinho quando falava sobre Singapura em jantares de amigos. Tecia-lhe sinceros elogios partindo da história do seu sucesso: a de uma cidade-Estado excluída de uma fugaz federação malaia que, forçada à independência e sem uma economia forte nem meios naturais capazes de assegurar a total auto-suficiência, conseguiu o enorme prodígio de, não só sobreviver, como transitar de um nível terceiro-mundista para um de primeiro.

Falava da estratégia de Lee Kuan Yew, o primeiro-ministro da região por 30 anos que conduziu a nação neste processo evolutivo. Para combater o elevado desemprego, a sua administração implementou políticas de industrialização que produziram numerosos postos de trabalho. Poucos anos depois, na época das multinacionais, Kuan Yew deslocou-se aos EUA com a mensagem de que a mão-de-obra singapurense era eficiente, barata e orientada pelos valores confucianos de lealdade e respeito ao próximo, aliciando os empresários americanos a colocarem as suas fábricas naquela região, a qual publicitava como um ponto geográfico estratégico de entrada no mercado asiático. Resultou: a taxa de desemprego tornou-se residual, o investimento externo aumentou, a economia cresceu e o país tornou-se numa referência mundial. E isto sem sacrificar aspectos do Estado social.

Falava das políticas que correram bem em áreas onde em Portugal ainda apresentam problemas: na saúde, um sistema que encaminha parte do salário para uma conta específica a ser usada em clínicas e hospitais pelo próprio utilizador; na habitação, construção intensiva fomentada pelo Estado, assegurando que, graças ao cariz social de boa parte do parque de habitação, ninguém ficava sem tecto; na natalidade, incentivos à classe média e alta a terem mais do que 2 filhos, nomeadamente por benefícios fiscais e prioridade no acesso às escolas de interesse em cenários competitivos; nos tribunais e na polícia, compensações salariais elevadas que tornaram as carreiras mais atractivas e blindadas à corrupção. Kuan Yew não era um idealista de esquerda ou de direita, mas sim um pragmático que aplicava medidas de esquerda e de direita. O estadista ideal para um tipo de centro como eu.

Sabia de alguns excessos nas suas leis (a proibição de pastilhas, as vergastadas aos delinquentes, a pena de morte aos traficantes de droga) e não os escondia, mas afirmava que Portugal poderia trazer algumas das políticas para cima da mesa do debate público sem atraiçoar os seus princípios. Não necessariamente implementá-las, mas, pelo menos, discutir a sua viabilidade. Ainda acho que pode ser feito, mas, olhando para os programas eleitorais destas legislativas, só um é que menciona Singapura como exemplo para uma área estratégica (o Volt, no âmbito da habitação). Não quer dizer que os grandes partidos não estejam de olhos neste ponto do sudeste asiático. Quando rebentou o caso João Galamba, enquanto futilmente se discutia à exaustão se o antigo ministro, no regresso de uma viagem profissional por Singapura, havia realmente ameaçado fisicamente um assistente e se deveria ser dispensado do cargo, a minha questão era só uma: "Qual foi a razão daquela viagem?" Ainda hoje não temos resposta. E devíamos. É que, entre outros países, foi Singapura quem auxiliou a China nas suas reformas capitalistas pós-maoístas, contribuindo significativamente para a transformar numa das principais superpotências económicas. A sua atitude é de cooperação internacional, fornecendo conselhos a quem os procura. Terá sido a procura deles o motivo da deslocação do antigo ministro das infra-estruturas? E, se sim, em que âmbito?

Deixei-me, em suma, levar pelo canto do leão-sereia, ao ponto de, no auge do meu ingénuo entusiasmo, ter enviado currículos e cartas de motivação para diferentes empresas ali estabelecidas. Nunca obtive qualquer resposta. Estou, hoje, contente que assim tenha sido. Viajando e confrontando-me com o presente e não com o passado, com a realidade e não com a ilusão, aquilo que em tempos foi para mim um modelo político de referência revela-se, actualmente, um protótipo para uma tecnoutopia distópica de intimidação psicológica e monitorização quase permanente. São 109.000 câmaras para 6 milhões de habitantes. 18 câmaras para 1000 pessoas. E esperam aumentar para 200.000 na próxima década. Junte-se a estes dados o inumerável número de placas e plaquetas sobre multas e proibições e experiencia-se como tanta segurança deixa uma pessoa insegura. Posso estar errado, mas antevejo que, num futuro não muito distante, os media passarão a dar mais atenção a Singapura e deixarei de estar sozinho a falar sobre ela aos jantares. Só duvido de que seja enquanto caso de sucesso.

PS: Termino este diário de viagem com a fonte do aeroporto ("HSBC Rain Vortex" é o seu nome) com que o iniciei. É das visões mais bonitas que um país pode receber uma pessoa. E despedir-se dela também. Olhar para ela recorda-me do bom que encontrei por aqui: a sua inovação, o seu verde, a sua generosidade, a sua beleza. Apesar de tudo, não deixa de ser um país bonito e recomendável para conhecer. Por agora.

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