sábado, 30 de março de 2019

Miguel Ângelo e Maquiavel

Uma história gira da autobiografia do DeMille sobre a origem daquilo a que é designado na fotografia e no cinema como "Iluminação Rembrandt", e para lembrar que Miguel Ângelo e Maquiavel têm de andar de mãos dadas, de quando em vez.

«Uma boa parte da magia do Belasco no palco era o seu maravilhoso uso de efeitos luminosos. Treinados nessa escola, Wilfred Buckland e eu decidimos experimentar [durante a rodagem de "The Warrens of Virginia"], tal como o D.W. Griffith e o Billy Bitzer também estavam a fazer, com efeitos de luzes especiais. Estava à procura de naturalismo: se um actor estava sentado ao lado de um candeeiro, era grosseiramente irrealista mostrar ambos os lados do rosto igualmente iluminados, portanto, com alguns holofotes emprestados da Mason Opera House, começámos a fazer sombras onde elas apareceriam naturalmente.

Buckland, Alvin Wyckoff, e eu ficámos muito satisfeito connosco próprios enquanto artistas, até a primeira cópia de The Warrens of Virginia ter chegado a Nova Iorque, e um Sam Goldfish muito perturbado ter mandado um telegrama a perguntar o que estávamos a fazer. Não sabíamos que se mostrássemos apenas metade da cara de um actor, os exibidores só quereriam pagar metade do preço habitual de um filme?

Há alturas em que o Miguel Ângelo mais puro é ajudado por um toque de Maquiavel. Jesse e eu respondemos ao Sam a dizer que, se os exibidores não sabiam o que era a "Iluminação Rembrandt" quando a viam, pior para eles. A resposta do Sam estava exultante de alívio: por "Iluminação Rembrandt" os exibidores iriam pagar o dobro!»

The Cheat (1915), Cecil B. DeMille
The Golden Chance (1915), Cecil B. DeMille
The Golden Chance (1915), Cecil B. DeMille

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Acabo de ver o Walk the Line do Mangold, e leio as críticas dos suspeitos do costume que foram escritas desde a altura. Deve ser picuinhice minha, mas fico espantado por nenhum deles referir este pormenor que está perto do princípio do filme (do qual gosto bastante): as nuvens. É do meu entender que, como o outro dizia do vento a soprar nas árvores, foi uma coisa que veio a desaparecer dos filmes ao longo dos anos. Pelo menos assim, a ocuparem tanto espaço visual e com a linha do horizonte ali no fundo a lembrar o cinema de Ford ou desses outros que faziam da paisagem atmosférica matéria-prima para enquadramentos pictóricos. Valorizo quando encontro casos que levantam a suspeita de que estou errado, caramba.

Vale, por isso, sempre a pena recordar a importância que elas tinham no cinema clássico por esta história do Hawks contada ao Bogdanovich sobre a rodagem de uma cena do Red River: «We were working in a basin, completely surrounded by hills. Well, clouds pile up on hills. In Tucson, if you shoot north, you’ve got bare skies; if you shoot south, the mountains are down there and you’ll always get clouds. So when you’re picking out a location, just figure that. Anyway, we were shooting and the wind had been blowing up high and then the fast-moving clouds came. We could see this cloud coming over the range, so I hollered at Wayne, “If you blow it,” I said, “just keep on talking about something and when I tell you to, come on out.” And when he started to read this service, the cloud passed right over the scene. He was reading a burial litany and it gave a very good effect.»
Walk the Line (2005), James Mangold

Red River (1949), Howard Hawks


sábado, 9 de fevereiro de 2019

Entrevista no podcast "À Beira do Abismo"

O Rui Alves de Sousa há-de ser a pessoa com mais iniciativa e energia que conheço. Crítico de cinema na Take Cinema Magazine, dos poucos que ainda acredita na relevância da blogosfera (para além do blog Companhia das amêndoas, ele é também fundador do colectivo Má Educação), co-criador ou criador dos podcasts Escolhe Tu e do já terminado Um Lance no Escuro... Mas o Rui é, acima de tudo, um amigo a quem dá sempre gosto trocar dois dedos de conversa. Ora, foi sob a perspectiva de uma conversa amigável que teve ele a simpatia de me convidar para aquele que é o seu podcast pessoal, À Beira do Abismo, o qual já venho seguindo desde há uns tempos, onde ele entrevista pessoas de diversas áreas (cinema, música, literatura, teatro...) que têm todas em comum o facto de serem bastante simpáticas e o terem coisas interessantes para dizerem. Como achei que faltava uma excepção à regra, aceitei, e os nossos temas de conversa resumiram-se às duas palavras mais bonitas do mundo (quer dizer, para mim são as duas palavras mais bonitas do mundo): cinema e Springsteen.

Deixo um sincero obrigado ao Rui pela experiência (até aqui era sempre eu quem segurava o microfone em entrevistas, e ainda bem) e votos para que continue a presentear-nos com o belo trabalho que tem feito em todos os diversos sites, blogs, podcasts, etc etc etc.

* iTunes: apple.co/2t43vKR
* Spotify: spoti.fi/2Ss8H9O
* Mixcloud: bit.ly/2qd9H21 
* YouTube: bit.ly/2SKmxnM 
* Castbox: bit.ly/2t44bQp

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Depois de tantos recordarem Jonas Mekas-cineasta, recordar Jonas Mekas-crítico com o seu texto sobre Une femme douce, um dos mais bonitos que conheço em torno de um filme de Bresson.

«Here is what I thought, walking home from "Une femme douce".
"Une femme douce" is a film about diagonals. Diagonal angles, diagonal glances. About eyes that never really meet. A film without a single frontal shot. A film about three-quarter spaces. About the sound of closing doors. About the sound of footsteps. About the sound of things. About the sound of water. About shy glances. About unfinished glances. About the sound of glass. About death in our midst. About light falling on faces. About lights in the dark, falling on faces. About blood on the forehead. About unfinished playing records. About a white crêpe blouse. About blue. About flowers picked and never taken home. About the roaring of cars. About the roaring of animals. About the roaring of motorcycles. About green. About how life and death intercut with each other. About hands giving and taking. About hands. About bourgeois pride. About pride. About lights on the door. About lights behind the door. About doors opening and closing. About bourgeois jealousy. About jealousy. About lamps turned out. About brown and yellow. About yellow. About indirect glances. About glances. About one peaceful glance (in the gallery, Schaeffer?). About unfinished records. About doors opening and closing. About doors opening very gently. About a half-opened door. About people standing behind glass doors and looking in. About fool's hope. About hopes. About a window which doesn't lead into life. About a red car seat. About a red shop window. About standing behind a door, looking in. About a green bed and green curtains. About a happy smile in the mirror, at oneself. About eyes which do not look even when asked. About the sound of metal. About sleep. About two diagonal lives.»
Une femme douce (1969), Robert Bresson


segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

"Não se mexe nas coisas, ai ai ai!", gritou para o ecrã uma menina dos seus 3 anos, a dois lugares ao meu lado, enquanto esta cena passava na sessão de ontem da Cinemateca Júnior. Ó-pá...

Yoyo (1965), Pierre Étaix

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Filmar a ausência

Não tinha ainda visto o Ida e gostei particularmente deste momento, com a secura da câmara e inexpressão da montagem diante a saída de cena (e do mundo) de uma personagem. Nenhum drama, nenhuma hesitação, e ao mesmo tempo a tremenda indiferença com que o sujeito filmado dá o derradeiro salto, feito com a maior naturalidade, deixando o espectador de olhos fixos no céu. Nenhum plano subjectivo durante a queda, nenhum corte para o chão no seu fim, nada. É a sensação fixa de vazio do quarto que permanece. Filmar a ausência é qualquer coisa como isto.

La meglio gioventù (2003), Marco Tullio Giordana
Ida (2013), Pawel Pawlikowski