terça-feira, 12 de junho de 2018

Saudades dos clássicos

«Uma coisa abusiva no cinema, e que não existe em outras áreas e que é umas das coisas que critico é que muitas vezes as pessoas que fazem filmes não os fazem constantemente. Não é uma profissão, digamos, regular; a não ser antigamente, em Hollywood. É por isso que os filmes eram… digamos, melhores, apesar de tudo; é o que me parece, de maneira geral; o filme médio era melhor que o filme médio actual; havia um pouco mais de conteúdo. Isso decorria simplesmente do facto de que as pessoas eram pagas por dia pelos grandes estúdios, e o pessoal vinha bater o ponto, por bem ou por mal, como numa fábrica, e na cantina conversavam com outras pessoas que faziam a mesma coisa… Havia um savoir-faire médio, uma harmonia média que se podia criticar, mas que existia; e hoje não existe mais. »

Jean-Luc Godard, Introdução a uma Verdadeira História do Cinema, 1980 (Tradução: Antonio de Padua Danesi)

domingo, 22 de abril de 2018

O que é impressionante nas actrizes do cinema americano de há 60 ou 70 anos é a capacidade que têm de revelar mais lubricidade com o uso de uma parte do seu corpo do que as que de hoje tentam forçosamente provocar, quando se expõe quase como se tivessem acabado de vir ao mundo. E podemos falar dos braços da Hayworth, do jogo de ancas através dos calções da Lana Turner, de um simples suspiro da Monroe (continue a enumerar quem quiser). Pura voluptuosidade, a anos-luz de ser rotulada como vulgar. A esta lista, passo a juntar os ombros da Ava Gardner no Mogambo. Hollywood hoje está mais púdica, mesmo quando mostra mais. E se alguém vê nisto um paradoxo, então não percebe o estado a que chegaram as coisas.



Mogambo (1953), John Ford


sábado, 31 de março de 2018

Books on Cinema: Rui Alves de Sousa

O crítico de cinema (na Take Magazine), podcaster (no À Beira do Abismo) e humorista Rui Alves de Sousa aceitou o meu convite para o Books on Cinema, onde teria de escrever sobre um livro de cinema à escolha. Ele seleccionou a autobiografia de Groucho Marx, Groucho and Me. Ao Rui, agradeço sinceramente o ter aceite a proposta, bem como o esforço empreendido em tamanha tarefa.
De resto, é ir ler o texto e, quem sabe, o livro.

sábado, 10 de março de 2018

Humor Fordiano

«-Mr. Ford, you made a picture called Three Bad Men, which is a large scale western, and you had a quite elaborated land rush in it. How did you shoot that?
-With a camera.»

«-Mr. Ford, how did you get to Hollywood?
-By train.»

«-Mr. Ford what did you thought you would achieve when you decided to make a career in motion pictures?
-I thought... I would achieve... a check

«(...) they had just held a production meeting and had reached the conclusion that the picture was four days behind schedule. Without changing his expression, Ford looked at him for a few seconds, and then casually opened the script, tore out four pages, handed them to the astounded man, and said, "We're on schedule. Now beat it." »

Tudo disponível em Searching for John Ford.


segunda-feira, 5 de março de 2018

Como fazer uma crítica à João Lopes

1º - Comece o texto com um "De que falamos quando falamos de [inserir nome de realizador cujo mais recente filme vai ser analisado ou a temática sobre o qual o mesmo reflecte]?"

2º - Caso se trate de um blockbuster a ser avaliado, certifique-se de que emprega o termo "videojogo" num sentido pejorativo, usando os filmes da Marvel como casos paradigmáticos. Defenda-se de eventuais acusações de elitismo lançando louvores ao Tubarão de Spielberg.

3º - Caso não se trate de um blockbuster, escreva que o filme em causa "está longe do mero acumular de efeitos especiais dos filmes de super-heróis."

4º - Se gosta do filme, certifique-se de que usa o termo "brilhante" em, pelo menos, um dos departamentos da produção (e.g., "montagem brilhante", "brilhante uso de efeitos especiais", "pastéis de bacalhau servidos naquela manhã pela brilhante equipa de catering").

5º - Caso tenha visto um filme comercial (ou de autor) português, diga que este é (ou que não é) semelhante aos reality shows e compare a semelhança (ou diferença) da interpretação dos seus actores aos de "telenovelas e seus derivados" (ou aos de "telenovelas e seus derivados").

6º - Se lhe parece que o filme vá ser destacado pela próxima edição dos óscares, saliente esse facto, mas disfarce, imediatamente, o seu interesse pela cerimónia, ao dizer que os resultados da mesma não têm qualquer relevância para a qualidade do objecto fílmico em si.

7º - Como conclusão, chame a atenção, em tom interrogativo, para o quão "sintomático" dos dias de hoje é o que o filme em causa apresenta, colocando, como remate final, um "eis a questão" confiante e paternalista (e.g., "Que é sintomático da falta de imaginação corrente o facto do João Lopes andar a escrever as mesmas críticas desde há mais de 10 anos? Eis a questão.")

Nota: E não se esqueça, um hélas por dia, dá saúde e alegria.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

The Blackout

Yet each man kills the thing he loves
Oscar Wilde, The Ballad of Reading Gaol

Impossível não recordar a frase do escritor irlandês aquando a visualização de The Blackout (Sentiste a Minha Falta?, 1997) de Abel Ferrara. Matty, o seu protagonista, é um actor que tenta relembrar uma noite em Miami que a memória acabou por recalcar. Ele é, afinal, a versão cáustica e auto-destrutiva do Scottie de James Stewart em Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), partilhando com ele o desejo erótico, possessivo e cego que culmina na aniquilação inconsciente do objecto amado, reconstruído noutra entidade. Filme de excesso imoral (sexo, álcool e drogas) movido pelo excesso plástico (sobreimpressões, movimentos e diferentes texturas visuais), este último nunca se afasta, formalmente, do ponto-de-vista de Matty, fornecendo, de forma quase alucinogénica, o caos mental provocado pelo meio irresponsavelmente hedónico onde o protagonista habita. Excesso(s) que conduzem à depressão e sitiam a personagem num cerco esquizóide de aparências e obsessões, onde a libertinagem incompressível é sinónimo de condenação.

Mas The Blackout é também um filme sobre a procura da verdade e o insólito medo em encontrá-la. Medo encarnado pela culpa constante de Matty no pedido por um aborto à mulher que o abandonou ao ver o estado de decadência e dependência a que o amante havia chegado. E nessa procura estimulada pelo "apagão" do título, a reconstituição da imagem (ou "o plano que falta", como é dito no filme) só pode ser concebida pela memória cinematográfica. Reconstituição que é também a quebra definitiva da auto-imagem do seu protagonista, representada pelo confronto violento entre este e o ecrã que exibe o vídeo do homicídio que cometeu de uma adolescente ingénua que conheceu naquela noite. Ao que o olho humano fecha, a íris maquinal abre. O que a memória humana apaga, a cinematográfica restitui. E por isso, bem cedo nesta narrativa é evocado o imortal aforismo godardiano: "E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo."

As referências não se estendem só a Hitchcock e Godard. O lado elíptico e oscilante (entre o presente e o passado, a realidade e a alucinação) de The Blackout é notoriamente reminiscente de 8 ½ (1962, aqui evocado num cartaz afixado num consultório psiquiátrico) que, tal como a obra de Ferrara, contém um lado ácido à indústria do cinema pela entrada dos vários patamares de (in)consciência de um artista frustrado e afogado numa crise existencial que perdura. Talvez seja com base nesse "afogamento" que se alicerce o plano final onde, num "mar de memórias" (ou antes, de uma memória) um abrandar de braços representa uma desistência irrevogável para a vida. Num derradeiro esforço, Matty parte então numa busca infernal e impossível pela reconciliação com os seus fantasmas ao mergulhar no oceano gélido. Gesto suicidário que é também uma cristalização tardia do seu auto-conhecimento, onde a redenção se encontra sobrepujada pela culpa. Uma última sobreimpressão sobre aquele mar contendo o encontro de Matty com a adolescente ("Did you miss me?", pergunta-lhe ela a ele) ao qual se segue o inevitável negro. Ao blackout psíquico junta-se o fade out cinematográfico. Assim cai uma estrela.