sexta-feira, 7 de agosto de 2020

«-Chardin - disse Charley. - Sim, já o conheço. 
-Mas já olhou alguma vez para ele? 
(...) 
-Isso? - exclamou Charley com espanto. - Um pão e um jarro de vinho? É verdade que estão muito bem pintados. 
-Sim, tem razão. Estão muito bem pintados. Estão pintados com piedade e com amor. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho. É o pão da vida e o sangue de Cristo, mas não já negados aos que se finam de fome e de sede, ou servidos em óbolos pelos padres em determinadas ocasiões. É o sustento quotidiano da Humanidade sofredora. É tão humilde, tão natural, tão amigo! É o pão e o vinho dos pobres que só pedem que os deixem em paz, que lhes permitam trabalhar e comer em liberdade o seu simples passadio. É o grito dos desprezados e dos rejeitados. Diz-nos que, por maiores que sejam os seus pecados, os homens, no fundo, são bons. Esse pão e esse jarro de vinho são símbolos das alegrias e dos pesares dos mansos e humildes. Eles pedem-nos compaixão e afecto. Dizem-nos que esses homens são da mesma carne e do mesmo sangue que nós. Dizem-nos que a vida é curta e áspera, e a sepultura fria e solitária. Não é um simples pão e um simples jarro de vinho: é o mistério do destino do homem na terra, do seu anseio por um pouco de amizade e um pouco de amor, e da sua humilde resignação quando vê que até isso lhe tem de ser negado.» 

«Férias de Natal», W. Somerset Maugham. Tradução de Leonel Vallandro

Still Life with Bottle, Glass and Loaf (séc. XIX), Imitador de Jean-Siméon Chardin* 
*Mas, na altura do romance de Maugham, a autoria era atribuída ao próprio Chardin. E esta divergência em nada inviabiliza a análise no texto.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Quando se fala em Morricone, não se deveria falar em Alfred Newman, John Barry ou John Williams, mas sim em Mozart, Bach ou Beethoven. Não era "um dos maiores compositores de bandas sonoras do cinema", mas sim "um dos maiores compositores". Ponto.

Guardo com ainda mais saudade aquela noite de Maio, no Altice Arena. Grazie e arrivederci, Maestro.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Só porque gostava de ter lido mais citações dele por aqui.

«Os outros nascem para viver, estes para servir. Nas outras terras do que aram os homens, e do que fiam e tecem as mulheres, se fazem os comércios: naquela o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende, e se compra. Oh trato desumano em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os riscos das próprias! (...)

Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?»

«Sermão vigésimo sétimo», Padre António Vieira

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um adeus ao Lennie Niehaus (1929-2020), compositor e camarada - conheceram-se no exército, década de 50 - de longa data de Clint Eastwood.

(Antecipando a eventual questão: "Mas esta música não é do Clint?". Eastwood compôs, Niehaus fez os arranjos e orquestração, e da colaboração entre um e o outro resultou o mais bonito tema já posto sobre um pôr-do-sol.)

quarta-feira, 3 de junho de 2020

The Geisha Boy (1958), Frank Tashlin


"And then I see a darkness..."

O que fica do derradeiro Pakula, The Devil's Own? A fotografia desse mago da luz, o "Príncipe das Trevas" Gordon Willis, com aquela paleta de castanho, âmbar e negro, onde as personagens são mergulhadas com as suas ambiguidades morais e crises de consciência. Um filme dos anos 90 com sombras dos anos 70. Depois disto, veio-lhe a reforma, fartou-se de esperar que os actores saíssem dos camarins (palavras do próprio). Mas certificou-se de que ia deixar saudades no que é, a esparsos momentos, um longo adeus em chiaroscuro.