quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Filmar a ausência

Não tinha ainda visto o Ida e gostei particularmente deste momento, com a secura da câmara e inexpressão da montagem diante a saída de cena (e do mundo) de uma personagem. Nenhum drama, nenhuma hesitação, e ao mesmo tempo a tremenda indiferença com que o sujeito filmado dá o derradeiro salto, feito com a maior naturalidade, deixando o espectador de olhos fixos no céu. Nenhum plano subjectivo durante a queda, nenhum corte para o chão no seu fim, nada. É a sensação fixa de vazio do quarto que permanece. Filmar a ausência é qualquer coisa como isto.

La meglio gioventù (2003), Marco Tullio Giordana
Ida (2013), Pawel Pawlikowski


sábado, 1 de dezembro de 2018

«Ao entrar no quarto, eu ficara de pé no limiar, não ousando fazer barulho, e outro não ouvia senão o do seu hálito, que vinha expirar-lhe nos lábios, em intervalos intermitentes e regulares, como um refluxo, mas mais entorpecido e mais doce. E no momento em que os meus ouvidos recolhiam esse rumor divino, parecia-me que era, condensada nele, toda a pessoa, toda a vida da encantadora cativa, ali estendida sob os meus olhos. (...)

Então, sentido que o seu sono estava no auge, que eu não chocaria com escolhos de consciência agora cobertos pela maré-cheia do sono profundo, saltava deliberadamente e sem rumor para cima da cama, deitava-me ao longo dela, enlaçava-lhe a cintura com o braço, pousava os lábios na face e no seu coração, depois, em todas as partes do seu corpo, a minha mão livre e que também era soerguida, como as pérolas, pela respiração da adormecida; eu próprio era deslocado ligeiramente pelo seu movimento regular: tinha embarcado no sono de Albertine.»


Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira, Marcel Proust. Tradução de Maria Gabriela de Bragança.


La Captive (2000), Chatal Akerman

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Creio que há uma fase na vida de qualquer pessoa em que se sonha ter aquela profissão quase impossível de se alcançar com sucesso. Aquele período entre os 7 e os 14 anos em que julgamos que poderemos ser o próximo Ronaldo, o de Niro português ou a nova Sara Sampaio. Como o geek que fui nessa altura, a profissão que almejava era a de escritor de bds. Que queriam? Se havia secção que passava tempo na fnac, quando era miúdo, era a dos livros dos quadradinhos, onde fazia tempo nos sofás a folhear cada um dos cobiçados volumes com o entusiasmo de uma criança numa loja de brinquedos. Para além disso, é triste de admitir, mas durante anos a única barraca da Feira do Livro que me interessava era a da Devir.

Fiz com isso uma colecção enorme que ainda guardo, Lucky Luke, Astérix, Calvin & Hobbes, Quino, Alan Moore... mas principalmente super-heróis. De todos, o meu favorito era o aranhiço, o rapazito de classe média, inseguro, e que, na sua angústia existencial, tentava conciliar a salvação do mundo com o arranjar dinheiro para ajudar a tia no pagamento da renda ao fim do mês. Porque, acredito, era isso que o fazia especial, o demonstrar ter um verdadeiro bom coração quando não tinha o fato vermelho e azul vestido. E era isso que fazia do recém-falecido Stan Lee o maior dos escritores de banda-desenhada, a capacidade de provocar nos outros uma empatia extraordinária com uma figura da sua imaginação, partindo para isso de pessoas fragilizadas com os seus sacrifícios individuais quotidianos, os quais nunca adivinharíamos que pudessem fazer parte da vida de um super-herói. É isso que faz do Homem-Aranha o super-herói universal por excelência (é o mais vendido, caramba), não a capacidade invejável de trepar paredes, mas o facto de por baixo daquela máscara estar uma pessoa com que todos se identifiquem. E acredito que, no interior de cada número que Stan Lee tenha assinado o argumento, se possa encontrar esta lição, entre tantas outras: a de que para se ser um verdadeiro herói, basta apenas ser-se boa pessoa. Precisamos de quem nos relembre isso hoje em dia.

Fica-lhe o meu agradecimento junto a milhares de páginas por folhear.


domingo, 11 de novembro de 2018

Inoperável (ou, dos amores obsessivos de M. Swann):

«Pensava quase com espanto: "É ela", como se de repente nos mostrassem exteriorizada diante de nós uma das nossas doenças e não a achássemos semelhante ao que sofremos. "Ela", tentava Swann perguntar o que era; pois há uma semelhança entre o amor e a morte, mais do que essas tão vagas que sempre se repetem; fazer-nos interrogar mais a fundo, no medo de que a sua realidade se oculte, o mistério da personalidade. E aquela doença que era o amor de Swann de tal modo se multiplicara, esse amor estava tão estreitamente ligado a todos os hábitos de Swann, a todos os seus actos, ao seu pensamento, à sua saúde, ao seu sono, à sua vida, até àquilo que desejava depois da morte, era de tal modo um só com ele, que não seria possível arrancá-lo sem o destruir a ele quase por completo: como se diz em cirurgia, o seu amor já não era operável.»

Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Swann, Marcel Proust. Tradução de Maria Gabriela de Bragança.





Swann in Love (1984), Volker Schlöndorff

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Jean-Luc Godard sobre Bitter Victory (1957) de Nicholas Ray:

«Havia o teatro (Griffith), poesia (Murnau), pintura (Rossellini), dança (Eisenstein), música (Renoir). Agora há o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. (...) Bitter Victory não é uma reflexão da vida, é a própria vida tornada em filme, vista por trás do espelho onde o cinema a intercepta. É de uma vez o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema. (...)

Como é que alguém pode falar de um filme assim? De que adianta dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman enquanto Curt Jurgens observa é editada com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma cena onde os nossos olhos se tenham cerrado. Pois Bitter Victory, como o Sol, fecha-nos os olhos. A verdade cega.»


segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Deste lado quer-se muito ver The Other Side of the Wind. Enquanto não chega, ficam um par de excertos de Truffaut sobre Welles:

«A meu ver, todas as dificuldades encontradas por Orson Welles com o box office, e que certamente reprimiram o seu impulso criador, resultam do facto de ele ser um cineasta-poeta. Os financistas de Hollywood (e, para ser justo, o público do mundo inteiro) admitem a bela prosa, John Ford, Howard Hawks, ou mesmo a prosa poética, Hitchcock, Roman Polanski, mas muito mais dificilmente a poesia pura, a fábula, a alegoria, o conto de fadas."

"Orson Welles realizou filmes com a mão direita – Kane, Ambersons, os três Shakespeare, História Imortal, The Other Side of the Wind – e filmes com a mão esquerda, os thrillers. Nos filmes da mão direita, há sempre neve, nos da mão esquerda, disparos de fogo. Mas todos constituem o que Cocteau chamava de "poesia de cinematógrafo".»

(Na imagem, Huston, Welles e Bogdanovich nas rodagens do que esperamos que venha a ser um dos filmes do ano.)


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O meu nº 1

Quando tinha 10 anos, tive na escola a cadeira de Área de Projecto que consistia na divisão da turma em vários grupos que teriam de trabalhar um tema em comum, apresentando, no final do ano, um trabalho sobre ele. Nesse ano lectivo (o meu 5º), o tema foi "cinema". Estava a léguas de saber o que isso era (francamente, ainda estou, mas já não entro em pânico por isso). Para mim, cinema era o Indiana Jones, o Star Wars, e os filminhos de super-heróis que lá ia ver, todos os Verões, com o meu pai ao Oeiras Parque ou ao Cascais Shopping. No dia em que o tema foi atribuído, cheguei a casa e pedi ao meu pai ajuda porque não sabia mesmo em que me estava a meter. Ele saiu para ir à fnac e, quando voltou, trouxe este filme. Vi-o e fiquei boquiaberto. Como podia algo tão curto (50 min), sem efeitos especiais, a preto-e-branco e, para mais, mudo, conseguir ser tão forte, tão bonito, tão cómico e, ao mesmo tempo, tão comovente ("um filme com um sorriso e talvez uma lágrima", era assim que começava, e com razão)?

Foi o princípio daquilo a que poderei chamar a minha "cinefilia". Nas semanas seguintes, fui vasculhando e abrindo a colecção de DVDs clássicos que ainda habita cá em casa. Mais Chaplin, sim, mas também o Bogart, o Gone with the Wind e também os principais Coppolas, vieram-me todos parar às mãos por ela. O tempo passou, e quando já conhecia a colecção de trás para a frente, fui eu enriquecendo-a com as descobertas que ia fazendo por outras vias. Mas nunca deixei este filme. Revi-o com colegas de escola, amigos e, quando foi reposto em sala há uns anos, com a minha namorada da altura. No meio da transitoriedade de todas essas relações, ele permaneceu, ao nunca deixar de me causar o mesmo "impacto" com que o descobri. É por isso que é o meu número 1. Continuo a revisitá-lo, de quando em vez.