Por Luís Miguel Oliveira
"A Fronteira do Amanhecer" foi acolhido no Festival de Cannes (onde, pela primeira vez, um filme de Philippe Garrel integrava a competição oficial) com bastante violência: há abundantes relatos de uma pateada monumental, e da indignação das gentes que abandonaram a sala antes de terminada a projecção. O que "à la longue" tem pouca ou nenhuma importância, Cannes já recebeu assim muitos filmes de que hoje ninguém se atreve a dizer mal nem em voz baixa.
Estariam os espectadores indignados pela "rendição" de Garrel ao cinema "convencional", pela confirmação da troca, sucedida em meados dos anos 80, de um cinema de "poesia", marginal e subterrânea, por um cinema de "prosa" e de argumento? Tememos bem que se tenha tratado do contrário, e que o "petit scandale" se tenha gerado a partir de tudo o que nele ainda reenvia para os cavernosos delírios, românticos e estupefacientes, do Garrel de outras décadas, e de tudo o que nele, se convencional é, não corresponde a convenções deste tempo.
Sucede que Garrel faz cinema "antigo", e há muito que não fazia um filme tão "antigo" como "A Fronteira do Amanhecer". Tão antigo que até integra convenções do mudo - aquela maneira de terminar as sequências com a íris a fechar-se, já não há ninguém (literalmente ninguém) que ainda se lembre de fazer aquilo; trucagens rudimentares, uma mulher fantasma que aparece e desaparece pelo efeito combinado de um simples jogo de luz e de um vidro espelhado; o romantismo doentio, o tom e a "psicologia" ao estilo de um poeta "fin de siècle"; o onirismo à Cocteau ("Orfeu") transposto para um contexto (lugares e personagens) marcadamente contemporâneo. Nada disto é, de facto, o gosto do dia. Mas Garrel é homem de ideias fixas e de absoluta fidelidade às suas paixões e às suas assombrações (e, o que vai dar quase ao mesmo, à sua biografia). E é isso que ele continua a filmar. Talvez se possa dizer que anda em processo de revisão. Com "Os Amantes Regulares" resolveu alguma coisa do seu lado "nouvelle vague" e "Maio de 68" - e por "resolveu" entenda-se que deixou lá o seu "duplo" (o filho Louis), adormecido, enquanto ele, Philippe, fez um filme sobre esse adormecimento. "A Fronteira do Amanhecer", que também é uma maneira de abandonar o seu "duplo" (que continua a ser Louis), volta-se para um lado mais irracional. O grande fantasma da vida de Garrel já teve um nome e um corpo: chamava-se Nico, e está em quase todos os seus mais belos filmes de 70. Um pouco como Sternberg à procura de Marlene, mas de modo mais retorcido e flagelatório (?), outros nomes e outros corpos vieram representar, mais ou menos explicitamente, esse fantasma.
Na Laura Smet deste filme, se mais nada, podemos ver uma sua lembrança. E na história entre ela (uma actriz) e Louis (um fotógrafo), que a ocupa primeira metade do filme (digamos, a metade "realista"), o desenho em traço largo (mas subtil, delicado, de um pudor que tem no plano em que ele cobre o mamilo que ela, desfalecida, desprevenidamente deixara à mostra, a melhor expressão e o melhor resumo) de uma relação de "amor irregular", irracional e autodestrutiva, eco amortecido da biografia Garrel-Nico. Louis afasta-se, e quando volta é para encontrar apenas um túmulo. Entramos então na segunda parte, "Orfeu" mas também um "Vertigo" mental. Louis encontrou uma rapariguita morena (Clémentine Poidatz), de luminosidade sadia, vão ter um filho - é o tempo de um "amor regular", problemas corriqueiros, toda a força da realidade. Mas também toda a força da irrealidade, a memória afectiva (e um pouco de culpa, de "culpa de sobrevivente") como um abismo negro mas reconfortante e tentador. Assombrado pelas aparições de Laura, que o vem lembrar das juras de amor eterno que ambos trocaram, e que no fundo lhe basta atravessar o espelho para que as juras se cumpram, Louis vai cedendo. E atravessa o espelho. O último plano, o plano em que Garrel (Philippe) mais longe está da sua personagem, como se para se desfazer de mais um duplo, é totalmente oferecido à fé do espectador: sim, reencontrou Laura, num mundo de sombras inacessível à câmara; ou não, era apenas um miúdo meio palerma que pagou caro o seu romantismo infantil. Vai dar ao mesmo. No cinema, pelo menos, vai sempre dar ao mesmo.
Público, 20/11/2008
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